788-MIGUEL DE CERVANTES-Mini-Biografia

A FUGA

— Corra, Miguel, corra! O homem está morto!

Rodrigo empurrou o irmão e os dois saíram em disparada pela escura viela de Madri. Na pequena praça ficou o corpo ensanguentado, vítima dos punhos e da raiva incontida do jovem que fugia seguido de perto pelo irmão, Rodrigo.

Os assistentes da briga, atônitos, se aproximaram do corpo.

—Não está morto, não, veja, está se movendo. — disse um deles, estendendo sua capa no chão. —Vamos levá-lo até a bodega. Ajudem-me aqui.

Enquanto cuidavam do ferido, os dois fugitivos chegaram à casa dos pais.

—Você tem de fugir de Madri. — Disse Rodrigo que, apesar de ser mais novo, estava com a cabeça fria e pensava com lucidez.

Miguel, totalmente desorientado, perguntou:

—Fugir para onde?

—Sei lá. Pelas redondezas. Ficar escondido por algum tempo.

Apático, Miguel vê seu irmão pegar algumas roupas e colocá-las dentro de um saco. Amarrou a boca do saco e entregou-o ao irmão. Em seguida, fez o mesmo com algumas de suas próprias roupas. Pegou uma pequena caixa de madeira e uma sacola de couro e despejou o conteúdo da caixa na sacola. Moedas tilintaram ao se derramarem na sacola, que Miguel prontamente amarrou e dependurou na própria cintura.

—Vamos, mano! Vou com você. Temos aqui roupas e dinheiro para safarmos alguns dias.

A noite escura encobriu os dois fugitivos, que, sorrateiros, esgueiraram-se pelas ruas da capital, atravessaram as muralhas e saíram pela estrada em direção do leste.

—Para onde estamos indo? Perguntou Miguel, já voltando do estado de choque e começando a raciocinar.

— Vamos para Chinchon. Tenho conhecidos lá. Poderemos ficar escondidos.

Mudando o tom de voz, pergunta:

—Mas o que te deu na cabeça para brigar com Antonio daquela forma?

—Sei lá,não me lembro, estava meio bêbado. Ele começou a falar alto, criticando meu poema.

—Poema... Poesia! Você é mesmo um avoado, brigando por causa de versos.

—Você acha que ele morreu mesmo?

—Sei lá, Miguel. Vamos saber depois, agora temos de nos esconder.

Caminhavam em passos largos e rápidos. Miguel era mais alto e de pernas mais longas. Aos vinte e dois anos, era um rapaz aprumado, de boa aparência, romântico e estouvado, ao mesmo tempo. Gostava de ler e já tinha escrito alguns poemas. Poemas que foram o motivo da discussão e da briga com Antonio Sigura.

Já Rodrigo tinha vinte anos, era totalmente oposto ao irmão: baixo, atarracado, era decidido e prático. Quando viu o corpo de Alonso estendido nas lajes da praça, o sangue escorrendo pela boca e por ferimentos na cabeça, não teve duvida. Empurrou o irmão para a fuga.

—E papai? E mamãe? Quando souberem de nosso sumiço, vão ficar desesperados.

— Não será a primeira vez que passamos dias e noites fora de casa. Depois que chegarmos à vila, mando-lhes um recado.

O pai, cirurgião, por nome Rodrigo Cervantes, não era muito atento à criação dos filhos. Ultimamente, dedicava as noites ao jogo e a clientela diminuía. Já a mãe, Dona Leonor, era dedicada ao lar e aos filhos, aos quais chamava “pérolas de mi vida”.

O sol lançava seus primeiros raios, aparecendo por entre as serras que rodeiam a região. Atravessaram uma ponte e logo chegaram às primeiras casas da cidade, mergulhada ainda na névoa da fria manhã.

Cansados das horas de intensa caminhada, pararam no primeiro albergue que encontraram, misto de hospedaria e cavalariça, onde alguns viajantes já haviam chegado e tomavam a refeição da manhã.

Pediram fatias de presunto e pão e forraram o estômago. Descansados e alimentados, saíram à procura dos conhecidos de Rodrigo. Qual não foi a surpresa dele quando soube que haviam se mudado para outra cidade e ninguém sabia do destino dos antigos vizinhos.

Desacorçoados, sentados em um banco na praça principal, conversavam sobre o que fazer ou que rumo tomar. Foi quando uma caravana de carroças e carroções passou, escoltada por soldados.

—Para onde vão? — Perguntou Rodrigo a um dos soldados.

— A Barcelona e depois, para Itália. Vamos fazer parte do exército do rei em Nápoles.

Mais curioso do que pensando na fuga, Rodrigo perguntou?

— Podemos ir com vocês?

— Se aguentarem a caminhada... Podem vir.

— Vamos, Miguel!

Sacos nas costas, lá foram os dois irmãos, Rodrigo e Miguel de Cervantes, rumo a um mundo desconhecido.

SOLDADO DO REI

—Nome?

—Miguel de Cervantes Saavedra

—Quando e onde nasceu?

—Nasci em Alcaná de Henares, cerca de Madri, em 29 de setembro de 1547.

—Mui bien, está então com 23 anos.

Era o ano de 1570, e Miguel, após a longa viagem Espanha à Itália, tendo passado por Roma, sem recursos e sem destino, alistou-se em um regimento espanhol do exército de Filipe II sediado em Nápoles. Havia urgência na formação de tropas dos exércitos cristãos, ante a ameaça crescente de expansão do poder dos turcosna direção dos reinos cristãos e de Roma, e qualquer um que se apresentasse para a luta, era benvindo.

Rodrigo, na companhia de quem Miguel viajara sempre, também se alistara. Mal sabiam os dois que iriam participar em breve de uma das mais importantes batalhas de seu tempo.

Miguel escrevia aos pais com regularidade. As mensagens demoravam meses para ser entregues, o que não impedia que as notícias atravessassem mares e terras e relatassem o que estava acontecendo.

Em 29 de setembro de 1517, Miguel escreveu uma carta à mãe, na qual dizia:

“Hoje completo 24 anos. Longe de casa e da pátria, saudoso mas esperançoso de reencontrá-la um dia, estou em um barco de guerra do exército espanhol, para dar combate aos turcos. Não sei a disposição da frota inimiga e Rodrigo ouviu dizer que o combate será nos próximos dias. Reze pra que tudo nos seja favorável, e a vitoria nos sorria.”

O MANCO DE LEPANTO

Miguel de Cervantes não sabia da importância da batalha da qual estava prestes a participar, como, aliás, ocorria com a maioria dos combatentes.

O cenário era o Golfo Patras, em um local conhecido como LEPANTO, no sudoeste da Grécia. Naquele estreito golfo a armada turca se abrigara, para atacar as forças cristãs, que desciam pelo Mar Adriático.

De um lado, estavam os turcos, com maior frota —251 barcos— e mais combatentes 31.500soldados. A força dos cristãos, chamada de Liga Católica, contava com 208 barcos e 22.000 soldados. Mas era mais bem armada, com 1.800 canhões contra 750 dos turcos, o que realmente determinou o resultado dos combates.

Miguel de Cervantes estava a bordo da galé espanhola Marquesa, impossibilitado de lutar, pois ardia em febre. Quando ouviu o ribombar dos primeiros disparos, não se conteve: vestiu a armadura e subiu ao convés para participar do combate.

Ao vê-lo o capitão ordenou-lhe que descesse e que permanecesse no leito.

—Tenho servido o rei como bom soldado, e agora não vou ficar sem combater. — Respondeu Miguel de Cervantes, atento para as bombas e balas que choviam de todos os lados.

Por cinco longuíssimas horas se arrastou o combate entre barcos. Dado que os barcos combatiam em uma área relativamente pequena, as abordagens aconteceram na maioria dos barcos. Foi então, no combate corpo-a-corpo, que a supremacia dos cristãos se evidenciou. Os cristãos tinham melhores armas — arcabuzes e outras armas de tiro— e mais proteção, pois usavam armaduras, enquanto que os turcos atacavam com lanças e espadas, defendiam-se com escudos e usavam roupas leves.

Miguel de Cervantes levou dois tiros no peito (felizmente, protegido pela armadura) e um disparo de arcabuz feriu sua mão esquerda. Desses ferimentos, sua mão esquerda ficou sem movimentos, e ele passou a mancar, o que lhe legou o apelido de o manco de Lepanto.

A BATALHA DE LEPANTO, acontecida em 7 de outubro de 1571 foi, como registra a história, uma das mais importantes ocorridas até então e de crucial importância para a sobrevivência dos impérios cristãos, e, por extensão, de toda a cristandade.

ESCRAVO DOS ARABES

Voltando de Lepanto, os irmãos Rodrigo e Miguel de Cervantes permaneceram em Roma, por três anos (de 1572 a 1575), servindo o destacamento das forças de Espanha que defendiam o Papa.

Decidiram então voltar para a Espanha. Miguel estava com 28 anos e era agora bem diferente do jovem sonhador dos tempos idos. Viajaram munidos de documentos e do dinheiro ajuntado como soldados do rei.

Embarcaram em Nápoles, juntamente com dezenas de outros viajantes, com destino a Castela, numa embarcação comercial.

Estavam já no segundo dia de viagem quando foram vistas velas de embarcações vindas do sul.

— São corsários turcos, avisou o comandante, prevenindo seus passageiros.

Quando foram abordados não houve resistência, pois o comandante pensava numa negociação com os corsários.

Mas tal não aconteceu. Além do saque total da embarcação, os passageiros e a tripulação foram aprisionados elevados para Argel, porto do norte da África, território seguro para os piratas que infestavam o Mediterrâneo.

Toda a costa norte da África – compreendendo Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia — era chamada, pelos europeus, de Berberia. Dominada por piratas e corsários, comerciantes de escravos e todos os tipos de criminosos, representavam uma ameaça constante às embarcações comerciais que navegavam pelo Mar Mediterrâneo, tendo havido até incursões às algumas cidades costeiras da França, Espanha e Grécia.

Os irmãos Miguel e Rodrigo foram vendidos como escravos na grande feira de prisioneiros de Argel. Fazia parte do comércio negro de escravos o pagamento de resgate, quando as famílias dos prisioneiros podiam pagar os altos valores exigidos pelos proprietários dos escravos.

escravos.

Quanto souberam do destino dos filhos, os pais de Miguel e Rodrigo começaram a ajuntar dinheiro para o resgate de ambos. Passado um ano haviam conseguido dinheiro suficiente para o resgate de um dos filhos.

As negociações eram demoradas devido à distância e aos meandros que deviam seguir. Quando os irmãos souberam que havia dinheiro para o resgate de apenas um, Miguel foi categórico:

— Você, Rodrigo, deve ser resgatado primeiro. Eu aguento o tempo que for necessário para que nossos pais consigam mais dinheiro.

Miguel sabia que seria difícil aos pais, mesmo com a ajuda de Rodrigo, recém-libertado, conseguir novo montante para seu próprio resgate.

Rodrigo voltou para a Espanha em 1576. Nos quatro anos seguintes, Miguel não ficou esperando pelo dinheiro que poderia vir ou não. Tentou fugir do cativeiro por quatro vezes (em 1577, 1578, 1579 e 1580). A cada recaptura após a tentativa de fuga, novos sacrifícios e castigos lhe eram impostos, o que, de certa forma, o incitava a cada vez mais obter sua liberdade a qualquer custo.

Em 1580, foi finalmente libertado, após o pagamento do resgate. Havia passado cinco longos anos entre castigos, sacrifícios e tentativas de fuga. Estava então com 33 anos e havia passado 11 anos longe da pátria.

ANOS DE REALIZAÇÕES

De volta à vida normal, Miguel de Cervantes obteve um cargo de cobrador de impostos em Sevilha. Durante os próximos anos, desempenhará esse mister, que não era de seu gosto, mas que lhe permitiu percorrer toda a região de Andaluzia e Castela e a conhecer seus habitantes.

Entremeava o exercício do cargo publico com atividades a seu gosto. Em 1581, passou parte do ano em Lisboa, capital de Portugal, escrevendo peças de teatro.

Iniciou um romance com Ana Franca, que lhe deu, em 1584, uma filha batizada Isabel Saavedra, embora Miguel e Ana não fossem casados.

Os laços de casamento iriam prender Miguel a Catalina de Salazar, no mesmo ano em que nascera Isabel.

Após o casamento, passou a viver em Esquivias, povoado da região de La Mancha, onde a esposa havia nascido. Ali, se dedicou ao teatro e confessou que ficou impressionado com a região, constituída de paisagens extensamente áridas, e que usou como pano-de-fundo das aventuras do imortal personagem Dom Quixote.

Em 1585 dois fatos extremos marcaram a vida de Miguel de Cervantes: publicou “A Galatéa”, o seu primeiro livro de ficção, uma novela pastoral, estilo em voga na ocasião; e E seu pai falece, deixando um legado de dívidas contraídas no jogo.

Por volta de 1587, tendo abandonado há muito as funções de cobrador de impostos, foi nomeado Comissário Real encarregado de recolher azeite e trigo para a Armada de Espanha.

Essa Armada, conhecida desde o início como A Invencível Armada, foi uma esquadra composta pelo rei de Espanha Felipe II, no intuito de vencer uma guerra com a Inglaterra que já se arrastava há anos.

No ano de 1593, novamente ocorrem dois fatos notáveis na vida de Miguel de Cervantes: a publicação do romance La casa delos celos e a morte de Dona Leonor, sua mãe.

Não são conhecidas as causas da prisão de Miguel de Cervantes em 1597, em Sevilha, condenado a pagar uma dívida exorbitante. Talvez tenham sido pela dívida crescente de seu pai falecido doze anos antes, Talvez, pela quebra do banco onde depositava a arrecadação dos impostos ou dos valores arrecadados para a Invencível Armada. O fato é que ficou preso durante um ano.

Miguel não se entrega ao desespero. Confinado em uma cela fria, “engendrou” (como ele mesmo escreveu no prólogo da primeira edição) ali a sua obra prima Dom Quixote de La Mancha.

Ao deixar a cadeia, anistiado, soube da morte de Ana Franca, sua antiga amante, mãe de Isabel. Acontecimentos que datam de 1598, no apagar das luzes do século XVI.

NOVO SÉCULO, OBRA COMPLETA.

Durante alguns anos Miguel trabalhou em silêncio. Dele temos notícias em 1605, quando publicou a primeira parte de Dom Quixote. O sucesso foi imediato: no ano do lançamento teve seis edições. Porém, nada rendeu ao autor que continuou na pobreza.

Estava com 58 anos e vivia em recolhimento, dedicado às leituras, aos escritos e às orações. Piedoso, católico praticante, ingressou na Ordem Terceira de São Francisco em 1613. Nesse mesmo ano publicou Novelas Exemplares, um trabalho pequeno, com doze narrações breves. Também desse ano é Viagem a Parnaso, poema em duas partes (Numancia e O trato de Argel), que ficou inédito até ao final do século XVIII.

Em 1615, apareceu uma coletânea das melhores peças de teatro: Oito Comédias e Oito Intermédios. E este ano ficará marcado também com a publicação da parte final de Dom Quixote. Tinha então 68 anos.

O inverno de 1615/16 foi penoso para Miguel de Cervantes. Sua saúde era precária e sofria padecimentos devido aos ferimentos de guerra e aos longos anos de cativeiro na Berbéria. Em 23 de abril de 1616, o grande escritor faleceu tranquilamente. Alcançou, enfim, a serenidade final de espírito que tano procurou em sua atribulada vida. .

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 28 de junho de 2013

Conto # 788 da Série 1.OOOHISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/05/2015
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