789-O CAPETA DA PONTE

A pachorra da cidade ribeirinha era quebrada pelos apitos da gaiola que chegava despejando passageiros e desembarcando mercadorias.

A ponte que ligava as margens separava as populações. De um lado, a cidade mais antiga de Itaupinda, com mais habitantes e maior movimento, era onde a gaiola atracava. Do outro lado, era apenas uma pequena vila, em tudo dependente da sede: comércio, escola, igreja matriz. Tudo de importante estava do lado de cá da ponte.

Falando em escola, só tinha mesmo, nos meus tempos de menino, um grupo escolar, com quatro séries. Depois, as meninas iam ajudar às mães nas lides da casa e os meninos tinham poucas escolhas: aprender um ofício,como ajudante de pedreiro, aprendiz de marceneiro com seu Jonas que tinha paciência com os meninos, ou ficar no cais, à espera da gaiola, para carregar malas ou pacotes dos chegantes, ou pequenos volumes de mercadorias para as duas lojas da cidade.

Havia meninos que pescavam no rio e conseguiam um dinheirinho vendendo peixes e outros que ficavam na vadiagem.

Zequinha do Mingote (apelido do pai) era um desses ociosos que viviam fazendo artes, inventando todo quanto fosse maneira de ocupar o tempo. Era campeão de bolinha de gude e do jogo da finca. Apesar de endiabrado, era hábil: fazia estilingues e arapucas, raias e gaiolas de taquara fina.

Porém do que mais se orgulhava era de pular da ponte. Hábil nadador, passava sustos nas pessoas (principalmente os adultos) quando mergulhava e demorava a subir à tona, o que fazia de propósito. Era um exibido.

Essa vadiação lhe granjeara a fama de mau, e pelas maldades de moleque e suas diabruras, tinha um apelido que lhe caía muito bem: era o Capeta da Ponte, porque sua família morava em uma casa próxima da ponte, do lado miserável da cidade.

Bom de bola, como não podia deixar de ser. Tão bom que estava em todas as “peladas” quer na beira do rio, quer no campinho do Seu Gervásio ou até mesmo no centro, na praça da matriz que não passava de um descampado seco e poeirento.

A fama de mau elemento era tão grande na cidade que minha mãe (que era diretora do grupo escolar onde ele já tinha aprontado muito) nos proibia — a mim e ao meu irmão — de jogar as "peladas" de rua com ele.

Certa vez o treinador do time de meninos da cidade onde eu jogava como lateral esquerdo, chamou o Capeta da Ponte para completar nosso time como ponta direita.

— Não, meu filho não vai continuar jogando no time, se o Capeta entrar prá jogar — Minha mãe disse quando ouviu falar pela primeira vez que o perigoso menino iria entrar para o nosso time.

O nosso treinador (Mariano, um rapaz de 19 anos, já trabalhava na prefeitura) foi então até a casa de meus pais, explicar:

— Não tem perigo do Tomaz (era eu) jogar com o Zequinha. Tanto o Tomaz quanto o Zequinha são indispensáveis ao time.

Meu pai impôs a condição:

— Olha, seu Mariano, eu deixo, mas não quero saber de meu filho ficar aprendendo palavrão nos treinos. E nem de brigas. Sei como Capetinha é...

— Pode deixar, seu Guilherme, eu trato disto.

E tratou mesmo: cada vez que o Capeta falava um palavrão ou fazia qualquer drible perigoso, passando rasteira ou dando carrinho, o Mariano o colocava na cerca por cinco minutos.

Como a vontade de jogar era maior do que sua má educação, o Capeta foi ficando manso, obediente às ordens do treinador e praticando uma certa lealdade no jogo com os colegas.

Tenho certeza de que as lições do Mariano, nos tempos em que o Capeta foi jogador do nosso time, foram bem aprendidas, como se verá.

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Um dia o Capeta da Ponte sumiu da cidade. Pegou uma carona na gaiola, coisa difícil, só possível mesmo pra quem fosse muito encapetado.

Correu uma notícia de que ele havia morrido, mas foi só boato, porque tempos depois ele apareceu.

— Agora estou trabalhando no Rio, disse na primeira vez que apareceu, arrastando nos esses, chiando como um carioca.

Foi motivo de muito riso, pois a turma não podia acreditar no Capeta trabalhando.

Depois de outra sumida, voltou falando com bom sotaque de São Paulo, dizendo que era porteiro de um edifício. Pela maneira com que ele pronunciava os erres (principalmente em porteiro, porta, etc.) foi mais gozado ainda.

Mais algum tempo e eis o Capeta de volta, desta vez, como ele disse, para esquentar assento.

Ninguém acreditou.

O Capeta da Ponte montou uma empresa de instalação de antenas parabólicas que fizeram sucesso na cidade. Mandou instalar uma vistosa placa acima da porta de sua oficina, com o nome completo:

OFICINA DE INSTALAÇÃO

DE ANTENAS DE TELEVISÃO

JOSÉ ANTUNES MIGUEL

O negócio prosperou. Não se passou muito tempo e abriu filiais nas cidades vizinhas. Tornou-se um empresário de sucesso e ninguém mais ousou falar do "capeta da ponte".

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 1º. De Julho de 2003

Conto # 789 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Inspirado em narrativa de Sérgio Ferreira de Oliveira,

a quem dedico este conto

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/05/2015
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