Gente Fina Demais da Conta, Sô... = Histórias de Amor Safado

Todos meus amigos veteranos avisaram e eu não acreditei:

- Com farda de reco, cara, você não pega nem puta rampeira. Quanto mais mina que preste.

No primeiro dia de Exército saí todo orgulhoso de minha farda novinha em folha.

Elegantes, eu e o Piva arrastávamos pelas ruas os sacos de lonas onde estava o restante do fardamento de cada um, e olhávamos para todos os rabos de saia. Sem resultado algum.

Comecei a ficar preocupado.

- Piva, será que a mulherada não enxerga mesmo a gente com essa farda?

- Queria o que, meu amigo? Elas sabem que você só tem dezoito anos, que ganha uma porcaria de um soldo e, o pior de tudo, se viesse de boa família, digo em termos de grana, não estaria no quartel. Estaria no CPOR.

- Puta injustiça. Minha família é de classe média, meu intelecto é que é de classe baixa e é por isso é que não estou no CPOR.

- Burro, simplifiquemos.

- Ambos, simplifiquemos mais ainda. Sua família também tem uma boa renda. Já conheço a empresa de vocês. Só picape americana eu vi umas três com a marca da empresa.

- É, minha família está bem de grana. Agora cale a boca e veja se aquelas duas ali na frente estão ou não estão dando moleza pra gente.

E não é que estavam?

Eram duas moças altas, um tanto quanto mal vestidas, mas bem jeitosas por baixo dos panos.

A cada alguns segundos uma delas olhava para trás e dizia algo à outra.

- Mexe com elas, cara. Você é mais cara de pau.

- Espere um pouco. Quando ela olhar de novo eu mando um beijo. Se ela rir a gente apressa o passo.

A mais alta olhou pra trás e eu mandei um beijo sonoro, daqueles que são a expressão máxima da falta de classe. Ela riu alto. Parti então para a segunda fase de minha abordagem dos dezoito anos. Chamei por ela com um altíssimo:

- Psssiquitiuuuuu.

As duas se viraram em nossa direção ao mesmo tempo e, como uma dupla sertaneja, perguntaram ao mesmo tempo:

- É com a gente?

- Claro. Eu vi logo que vocês são da família Psiquitiu.

- A gente não gosta de homem sem classe. Isso é jeito de mexer com moças direitas?

- É que nóis ainda não é home de verdade, mocinha. Nós é menino de dezoito anos. Nós nunca mexeu cas mulé na rua. Começamo a aprendê transanteontem.

Cume que se mexe com moça direita? Ce minsina?

Eu havia lido em algum lugar que fazer uma mulher rir era metade do caminho para a cama. Como elas eram duas, achei que havia feito todo o percurso e quase perguntei se queriam partir para os finalmente.

Uma delas mostrou ser muito observadora. Olhou-nos dos pés à cabeça e perguntou o que fazíamos na vida.

Antes que eu pudesse abrir a boca, Piva tomou a dianteira:

- Nós somos do Serviço Secreto do quartel. Cuidamos da segurança do comandante.

A cara séria, o tamanho e a imponência do porte do Piva levaram as moças a acreditarem.

- É mesmo? Que bacana! E é muito arriscado?

- Vocês nem podem imaginar. É tão arriscado que a gente só sai do quartel usando farda de recruta. Eu e o tenente Lindomar, este meu colega, só podemos usar farda de recrutas. Não podemos nos arriscar usando nossas fardas de oficiais.

Eu, que até aquele momento não sabia que era tenente e que me chamava Lindomar, tirei o bibico, curvei-me respeitosamente e beijei as mãos das duas. Um verdadeiro cavalheiro dos filmes que via quando havia dinheiro.

- Oficiais do Exército? Que bacana! Bacana mesmo. Deve ser emocionante cuidar da segurança do comandante.

Piva riu com superioridade.

- O tenente Lindomar é especialista em segurança. É meu subordinado e segura o que eu mandar segurar.

O filho da puta estava me diminuindo e caluniando ao mesmo tempo. Outra hora eu mostraria a ele o que é que segurava…

- As lindas jovens, o que fazem da vida?

- No momento nada. Estamos em férias aqui em Beagá.

- Que bom estar de férias…Há tempos que nós dois estamos precisando de umas férias, não é, meu caro tenente Lindomar?

- E como, meu caro primeiro-tenente Belapraia. Essa vida tem nos desgastado muito.

- Oriundas de…?

Elas devem ter confundido oriundas com outra palavra qualquer terminada em undas e ficaram vermelhas.

-Vocês vieram de que lugar do Brasil? Pela beleza devem ser do sul.

- Do sul nada. Nós viemos foi de Conceição do Mato Dentro.

- Dentro de onde?

- De onde como?

- Onde é que a Conceição tinha o mato dentro?

- Sei lá. Nunca perguntei a ninguém. E você, tenente Lindomar, de onde veio?

- De Santo Antônio do Pau Grande.

As duas moças, finíssimas, caíram na gargalhada. Aproveitei a alegria e informei sobre Piva, o primeiro-tenente Belapraia:

- Ele é de Ponta Grossa e a irmã dele é de Curralinho. Os dois não combinam de jeito nenhum.

Mais gargalhadas.

- Então, lindas jovens, o que têm para fazer hoje à noite? Nessa noite tão linda e enluarada que sói acontecer apenas em nossa linda e privilegiada capital?

Piva, naqueles dias, deve ter lido muito Eça de Queiroz e incorporado o Conselheiro Acácio. “Que sói acontecer…”.

- Ah, você nem imagina a tristeza para essa noite…Papai ficou de mandar um dinheiro, mas não chegou ainda. Vamos ficar lendo as fotonovelas que trouxemos na bagagem. Coisa mais chata do mundo.

- Se depender de mim e do tenente Lindomar, isso não acontecerá. Em meu nome e no dele, convido-as a conhecer um restaurante finíssimo aqui mesmo na Floresta. Eles servem um prato maravilhoso, chamado Caol, que é uma coisa divina. Já tiveram o ensejo de conhecê-lo?

- Não. Ainda não tivemos ensejo nem oportunidade de conhecer esse restaurante.

- Vamos indo pra lá. Talvez ainda encontremos mesas vagas.

O tal “restaurante” era um boteco de esquina muito famoso pelo imenso prato que servia e que tinha por nome as iniciais de carne, arroz, ovos e lingüiça. Cada prato era uma pilha de comida que daria para alimentar três pessoas de apetite moderado, e custava pouco dinheiro à freguesia de pouco poder aquisitivo. Comer a metade do que vinha naquele prato gerava um arroto que saía até pelas orelhas.

Com gestos elegantes e voz discreta, Piva, o tenente Belapraia, solicitou quatro “caóis” e duas cervejas. Quanto às cervejas, pediu que viessem em copos e que o garçom colocasse algumas garrafas de guaraná em cima da mesa.

- Sabem como é, senhoritas, nós, do Serviço Secreto, não podemos ser vistos bebendo por aí. Temos que disfarçar o máximo possível.

As duas moças limparam o prato a tal ponto que se o lavador de pratos do boteco não tivesse consciência poderia passá-los para os próximos fregueses sem lavá-los.

Hoje em dia a gente teria dito, no mínimo:

- Caracas !! Pra onde foi tanta comida?

Ninguém de nossa turma, jamais, em tempo algum, conseguira chegar até o final do prato do Kaol e elas ainda aceitaram uma modesta sobremesa pra arrematar.

Finda a refeição no suntuoso restaurante, acompanhamos as duas moças até a casa onde passavam as férias. Mais amparando-as, devido ao peso da comida que carregavam nas barrigas, do que propriamente dando-lhes os braços, chegamos os quatro à residência de férias das duas.

- Vocês não reparem, tenentes, mas a casa que minha tia nos empresta nas férias e muito simples. Simples demais da conta. Querem entrar?

Mesmo sem convite teríamos entrado. Não seria de graça aquele lauto jantar acompanhado de cervejas e sobremesa.

- Tenentes, vocês são pessoas maravilhosas. Levaram a gente a um lugar fino, comportaram-se como cavalheiros, trouxeram a gente em casa e nos deram uma noite inesquecível. Como poderemos pagar a bondade de vocês?

Nós dissemos como, elas acharam justo, e nós dois saímos de lá satisfeitos e comprometidos a voltar sempre.

Mas até hoje eu não sei onde é que a Conceição tinha o mato dentro.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 12/06/2007
Código do texto: T523134
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