Nóis Que Gosta Muntio de Lê.." = Histórias de Amor Safado
Éramos uns quinze ou vinte vendedores chegando ao mesmo tempo a um hotel de Jaú, interior de São Paulo, e eu fui um dos primeiros a chegar à portaria. De repente minha mala se abriu como numa explosão e espalhou, além das roupas e sapatos, um conteúdo que impressionou a quantos o viram: os vários livros que eu estava lendo naquela época.
- Pô, meu! Você traz livros usados pra vender?
- Que vender o que, cara…São os livros que estou lendo.
- Vai me dizer que você lê esses livros todos? Do princípio ao fim…
- Não, cara. Leio só a orelha do livro e a última página – respondi com impaciência.- Pergunta besta.
- Aposto que ele abriu essa mala de propósito, só pra mostrar que ele é intelectual.
- É. Minha mala é ensinada. Quando vê muitos burros reunidos, ela se abre e mostra que ler não mata ninguém. Catzo de vendedores de livros que são vocês. Uma cambada que se admira de alguém levar livros em viagem! E vendem o que não têm: cultura.
Sacaneado por minha mala ter-se aberto e espalhado minhas coisas, irritado com as brincadeiras idiotas e com as perguntas cretinas, fui recolhendo as coisas um tanto quanto precipitadamente e jogando-as na mala de qualquer maneira. Resultado: não coube o mesmo tanto que quando estava arrumada e fui para o quarto sobraçando uma coisa disforme, sujeito a cair tudo no chão novamente.
Éramos todos amigos, colegas de trabalho havia um bom tempo, e ninguém levou a sério meu destampatório da chegada. Assim jantamos todos ao mesmo tempo nas mesas reunidas para nossa turma, rimos muito, conversamos bastante, contamos nossas piadas, e depois saímos a pé para conhecer a cidade.
Uma das colegas aproximou-se de mim e perguntou o que eu achava de Mark Twain.
- Fabuloso- respondi- Quando era moleque eu lia e relia as aventuras de Tom Sawer e do Hucleberry Finn. Depois, já adulto, li a biografia dele e gostei demais. E leio tudo que encontro dele e sobre ele. E você, gosta dele?
- Comecei a conhecer agora, e já ri mais do que ri lendo todos os outros livros.
- Gosta muito de ler também?
- Adoro. Estou até muito aborrecida por ter esquecido meu livro em casa.
- O que é que você está lendo?
- As Vinhas da Ira, do…
-Steinbeck. Maravilha de livro. Tem um final maravilhoso. Um final que deixa a gente até engasgado.
A turma voltou para o hotel, mas nós dois continuamos sentados em um banco de uma pracinha e falando mais do que pobre na chuva.
Falamos durante muito tempo sobre Tolstoi, Dostoievski, Tchecov, Gabriel Garcia Marques, Jorge Amado, Fernando Sabino, Balzac, Júlio Verne–sentindo, ambos- saudades da infância- Karl May – idem- Monteiro Lobato- mais saudades ainda-Graciliano Ramos, Eça de Queiroz, Irving Wallace, Sidney Sheldon, Raul Pompéia e mais algumas dezenas de nomes que iam se interligando e recebendo nossos elogios, críticas ou provocando algumas controvérsias entre nós dois, os dois mais do que ecléticos leitores.
A certa altura, já percorridas várias estantes de nossas memórias, passamos a conversar de mãos dadas e ela me perguntou se eu gostava também de poesia.
Como resposta recitei alguma coisa de Vinícius retida na memória, e logo falávamos sobre Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda, Vinícius de Moraes, Augusto dos Anjos–que ambos abominávamos-Castro Alves, Gonçalves Dias, Bruna Lombardi, e cada um citava um trechinho de poesia no ouvido do outro.
Quando ela passou a falar em letras de música, passei a ser apenas ouvinte. Levei muitos anos pra decorar a letra do “Parabéns a Você”.
- Minha nossa!! Nosso papo está tão bom, tão gostoso, que nem vi as horas passando…Quase uma da manhã, meu querido.
- Tarde mesmo. Você está com sono?
- Nenhum. Que livros você trouxe na mala?
- Depois te mostro. Se quiser ler algum deles, estará às suas ordens.
- Lá no hotel você pode levá-los ao meu quarto? Ou posso ir vê-los no seu?
Vendo o sorrisinho safado, não tive dúvidas:
- Hoje, apenas hoje, faremos o seguinte: os livros ficarão em meu quarto e nós dois ficaremos no seu. O que você acha da idéia?
- Fantástica. E nos outros dias?
- Leremos uma página antes e outra depois.
- Antes e depois do quê?- ela perguntou e caiu na risada.
Foi minha primeira e única lua-de-mel literária. Maior saudade de você, Fernandinha, minha querida xará no feminino.