Um Admirador Secreto Uma História de Amor Nada Safado

Pela manhã, ao chegar à Empresa, ela só escutava cumprimentos carinhosos, do tipo “tudo em ordem, lindinha?”, ” como vai, moça bonita?”, ” passou bem a noite, gatinha linda?”.

Eu era o único em quem ela passava a mãozinha levemente pelos ombros e de quem escutava:

- Tudo em ordem, Filhote de Cruz Credo?

- Tudo em ordem, Frankenstein Piorado. Gostou da minha roupa nova?

- Bonitinha. Aproveitou alguma liqüidação do brechó?

- Quem me dera…Roubei de minha irmã. Fiz o cabelo neste fim-de-semana. Você reparou?

- Fez mesmo? Eu nem tinha reparado que você não tinha cabelos…

- Idiota…Quando uma mulher diz que “fez o cabelo” ela quer dizer que foi ao cabelereiro.

- Ô bicho complicado mulher…Porquê não diz logo que foi ao cabelereiro?

- Porquê você, troglodita, logo ia perguntar o que é que eu fui fazer lá.

- Claro que iria perguntar. Você poderia ter ido lá só fazer fofoca, caluniar alguém, roubar uma peruca. As possibilidades são muitas.

- Então fique sabendo que eu fui ao salão fazer um novo penteado, mudar um pouco a cor de meus cabelos, dar uma aparada. Enfim, fui ficar mais bonita.

- Deve ter saído bem decepcionada…Ele vai fazer tudo de novo? Tá na garantia?

- Vai me dizer que não fiquei mais bonita?

- Minha cara jovem, partamos do seguinte princípio: só pode ficar MAIS bonita a pessoa que já É bonita. Outras ficam menos feias. Entendeu?

Ela arrebitou o narizinho, cruzou os braços e lançou o desafio:

- Olhe dentro dos meus olhos, encare-me de verdade, e diga na minha cara que eu sou feia.

Levantei-me de minha cadeira, cheguei meu rosto bem perto do dela e encaramos-nos por alguns instantes.

Finalmente fiz um ar de rendido:

- Não, sinceramente não posso dizer, em sã consciência, que você seja feia. Olhando bem de perto seus olhinhos azuis, seu queixinho pontudinho, seu narizinho, não posso dizer que seja feia.

O ar de triunfo que surgiu na carinha dela quase me fez mudar o rumo que eu queria dar ao assunto, mas me contive.

- Então? Eu não disse que você não teria coragem?

- Pra ficar feia você tem que melhorar muito, minha querida.

Aquela foi a primeira vez que ela ficou brava de verdade. Até então tinha agüentado bem minhas chatices, implicâncias, brincadeiras sem graça. Ela era mesmo uma coisinha linda: pequena, mas não demais; magra, mas no ponto certo; delicada, brincalhona, bem humorada e sempre perfumadinha e bem vestida. Eu sentia meu corpo amolecer quando ela ficava muito perto de mim. Era doido por ela.

- Seu chato!! Não converso com você nunca mais! Só você faz essas maldades comigo. Os outros todos me tratam bem. Só você implica comigo. Fique sabendo que muita gente diz que sou bonita.

- Família não vale. Eles estão sempre levantando o moral da gente…

- E tem mais: eu tenho um admirador secreto que é louco por mim. Fique sabendo.

- Secreto eu acredito. Há motivo pra isso. Admirador é que eu acho mais difícil. Louco, está explicado.

- Vá tomar banho! Estamos de relaçõe cortadas.

- Nunca tivemos relações…Felizmente.

- Você entendeu o que eu quis dizer. Vá tomar banho!

“Vá tomar banho” era o palavrão que ela usava quando muito, muito brava mesmo. E cada vez que o dizia eu tinha vontade de esmagar aqueles labiozinhos junto aos meus.

Quando ela ia saindo, pisando duro, eu a chamei de volta:

- Venha cá, por favor, Fôrma de Fazer Capeta. Sente-se aí e me conte sobre esse seu admirador secreto. Sobre o pobre doido-manso.

- Vou te contar nada.

- Deve ter inventado isso pra me fazer ciúmes.

- E que motivo você teria pra ter ciúmes? Não temos nada a ver um com o outro.

- Não por falta de vontade sua, mas um dia, quem sabe…Mas me conte: o que é que esse admirador secreto faz de bom que te deixa tão feliz?

Ela abriu aquele sorriso que sempre me derreteu por dentro, mas contive-me. Como sempre.

- Ele é tão diferente de você…Ele diz que eu tenho a pele mais linda que ele já viu…

- É uma pista. Vai ver trabalha em curtume. Acostumado a limpar peles de bichos e comparando…

Ela fingiu que não ouviu.

- Ele diz nas cartas que não existem olhos azuis tão lindos e escuros quanto os meus…

- Está enganado. Eu tenho uma tia que tem um olho de vidro idêntico aos seus.

- Ele me manda cada poesia tão linda que você não pode nem imaginar.

- Leia para mim algumas dessas poesias que eu lhe digo quem são os autores copiados. Tenho boa memória para essas lenga-lengas amorosas rimadas.

- E, pra completar, me manda em casa cada caixa de chocolate…

- Essa tua carinha de fome inspira a isso. Se eu te paquerasse secretamente, mandaria cestas básicas todos os meses.

- Ele é tão cavalheiro, tão fino, tão bem educado. Enfim, em nada parecido com você.

- Eu estou achando que esse cara é bicha. Educadinho demais pro meu gosto. Vai ver manda rosas beges e usa sapatilhas em casa.

- Como é que você sabe?

- Que ele usa sapatilhas em casa?

- Não. Que ele manda rosas beges.

- Coisa de florzinha. Macho apaixonado manda rosas vermelhas. Cor da paixão, do desejo. Cor forte.

- Qualquer hora te mostro a pulseira de duas voltas que ele me mandou de presente de aniversário.

- Aposto que era um colar e você, panaquinhas, achou que era pulseira de duas voltas.

- Será? Ela está na bolsa. Vou experimentar no pescoço agora mesmo.

Era um colar e nós dois rimos gostosamente.

- Tem horas que eu sou tão bobinha…

- Uma média de vinte e quatro horas por dia.

- Tchau, seu chato. Seu papo me cansa.

- E você, mesmo assim, não sai de perto de mim. Daqui a pouco estará de volta e ansiosa por maus tratos. Legítima mulherzinha de malandro…Ah, ia me esquecendo: esse seu perfume me traz boas recordações…

- Presente dele também.

- me lembra o tempo que eu podia encher o tanque do meu carro. Gasolina da boa…

Ela me mostrou a pontinha da língua e tive vontade de morder aquele pedacinho de carne rosada.

Antes que ela desse o quinto passo, chamei-a de novo:

- Por favor, minhocuçu, quero uma informação qué só você pode me dar.

- Vou fingir que não ouvi o “minhocuçu”. O que quer saber?

- Onde você mandou fazer essa sua dentadura? Ela ficou tão natural que eu queria indicar seu protético à minha avózinha.

Ela fechou a mãozinha, levantou-a até perto de meu queixo e rosnou baixinho:

- Uma hora dessas eu te acerto pra valer…Você vai ver…Você ainda vai ver…

Ficamos nessas brincadeiras bobas, chatas, de minha parte, por um bom tempo. Até que um dia fomos os últimos a sair da Empresa e eu pedi a Deus, em voz alta, que não permitisse que o elevador enguiçasse conosco dentro dele.

Ela perguntou de imediato se eu tinha medo de enguiço de elevador.

- Não, minha querida. Meu medo é ficar preso com você dentro dele.

Ela riu, como quase sempre:

- Você ainda vai conseguir meu ódio. Juro que vai. E aí verá o que é bom pra tosse.

- Que nada. Bem lá no fundo desse seu coração sem bondade, e desse seu cérebo maldoso, você tem muito amor por mim. Sabe é disfarçar muito bem.

A perturbação que li nos olhos dela foi como um raio de luz para mim! Será que eu, brincando, acertara na mosca?

Não tive tempo de confirmar: o elevador estancou de repente e tudo escureceu totalmente.

- Deus do céu!! Enguiçou mesmo!! Eu tenho pavor de escuridão, colega.

- Calma, minha querida, calma. Logo aparece alguém pra consertar, ou a coisa volta a funcionar sozinha. Vai ver só faltou a luz por um tempinho…

Apavorada, tremendo feito vara verde, ela se aproximou e eu a abracei com ternura.

- Calma, gatinha. Fique sossegada. Não precisa entrar em pânico. Essas coisas estão sempre acontecendo.

- E se o elevador cair? Já pensou?

- Cai nada. E se cair do chão não passa. Além do mais nós estamos quase no térreo. Não dá pra matar ninguém. Vamos nos sentar no chão e conversar pra distrair. Fale-me daquele bobo do seu admirador secreto.

Ela não conseguia falar nada. Tentou algumas vezes, mas apenas gaguejava.

Segurei com força a mãozinha dela, apertei-a junto ao meu peito e consegui esconder dela minha claustrofobia. Cuidando dela esquecia de meu próprio medo.

- Olha, minha querida, eu nunca te contei que sou adivinho. Eu adivinho tudo da vida de uma pessoa quando a abraço. Quer ver como sei tudo sobre seu admirador secreto?

- Sabe mesmo? Então recite uma poesia dele.

Comecei a recitar a primeira poesia que enviara a ela, que me custara muito esforço por não ter sido copiada, e senti que ela afrouxava o aperto em minha mão. À medida em que eu recitava ela ia se soltando e ajeitando-se para ficar em pé.

Antes que eu chegasse, sentado, ao fim da poesia, ela colocou a boca na abertura da porta do elevador e gritou:

- Seu Antão, pode descer o elevador. O crimininoso já se confessou.

Levantei-me rindo do ardil que ela empregara para fazer-me confessar e procurei abraçá-la e beijá-la.

Ela me afastou empurrando-me pelo peito, delicadamente:

- Sai pra lá, peste. Nós só vamos conversar sobre o que você quer depois que me pedir perdão de joelhos pelas desfeitas que me fez. E também vai me explicar o porquê do Admirador Secreto.

Enquanto o elevador fazia o resto do percurso, depois de alguns trancos, ajoelhei-me aos seus pés e pedi perdão por tudo. Fui perdoado com a porta aberta para o térreo.

Foi fácil também explicar, entrecortando com beijos, que minhas brincadeiras chatas, minhas implicâncias e tudo mais eram também parte da tática geral para chamar a atenção dela. Os que a veneravam na Empresa eram muitos, e jamais haviam ganho um olhar promissor. Já eu, o dissidente…

Durante vários anos ela passou a ouvir de minha boca apenas elogios sinceros. Maravilha de pessoinha…

Eu havia me “entregado” quando ela, de propósito, chamou o colar de pulseira. Corrigindo-a, “entrei de gaiato", mas no final me dei bem.

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Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 12/06/2007
Código do texto: T523213
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