797-NOTÍCIAS DA GUERRA - Histórias de Tio Gordo

Os velhos italianos da Rua Barão acompanhavam de longe e com grande preocupação os acontecimentos na Europa e principalmente desenrolar dos fatos na inesquecível Itália.

Nas reuniões matinais na loja de Chico Cervejeiro (ou tio Gordo para as crianças da família) as conversas giravam em torno das notícias impressas em manchetes na “Fanfulla”, no idioma da península.

Giusepe Magesti era o mais exaltado. Ainda posso me lembrar de seus basto bigode branco encardido, tremendo quando ele se entusiasmava com os feitos de Mussolini, “Il Duce” dos italianos.

Lia para a assistência composta de meia dúzia de patrícios— e fazia os comentários pertinentes com a autoridade de quem sabia das coisas.

O movimento da loja era quase nenhum na parte da manhã, o que deixava Tio Gordo à vontade para participar também das discussões. Fazia constantes referências à Itália que havia visitado em 1929, e comparava com os fatos do dia.

Proibiam-me de permanecer na loja naqueles momentos, ficar ouvindo os nonnos, mas eu gostava de ouvir as discussões, a histórias da guerra, e encontrava um jeito de passar as manhãs na loja.

Papai, que trabalhava na sua marcenaria no fundo do quintal, ajudava na loja nas horas de maior movimento, nem queria saber das notícias da guerra. Sua paixão era mesmo o trabalho e dizia:

— Eles estão falando demais. Pensam que é brincadeira. Essa confusão na Itália e na Alemanha ainda vai sobrar prá nós. Qualquer dia...

Deixava o pensamento interrompido, sinal de que o que pensara era impróprio para que eu e Artur, crianças de 7 e 5 anos.

Parecia profecia. Não tardou muito, a Alemanha começou a bombardear Londres com foguetes.

O medo da guerra foi se insinuando na família. Minha mãe não queria saber das notícias, mas à noite, após o jantar, a conversa entre papai, tio Gordo, Madrinha e tio Armando resvalava para o assunto do momento: a guerra.

O jantar era servido na cozinha (grande e acolhedora, com fogão de lenha) e era invariável: sopa com pão e bolinhos fritos, feitos com as sobras do almoço — de arroz, de legumes, ou porpetas (almôndegas) com bastante molho de tomate. Em seguida, todos iam para a sala de jantar, “para fazer a digestão”, como diziam: alguns momentos de ócio. Os adultos (menos Tio Gordo) se entretinham com um jogo de baralho chamado “bisca” [1]. Tio Gordo conversa pouco, entre os cochilos.

Uma noite, tio Armando deu uma notícia assustadora:

— Um navio brasileiro foi afundado por submarino alemão. Dizem que há muitos mortos.

— Creio-em-Deus-Padre! — persignando-se, Madrinha esconjurou a notícia.

— Se o Brasil entrar na guerra, de certo que vou ser convocado.

Tio Armando havia feito o serviço militar no Regimento de Cavalaria do Exército de Três Corações há pouco tempo. Ainda sentia umas dores no tornozelo esquerdo devido a um pisão de um cavalo.

— Vira essa boca prá lá, Armandinho! Vê lá se eles vão se lembrar de você. — Disse minha mãe, com a mais santa simplicidade.

Meu pai e minha mãe visitavam uma vez por semana o compadre Nicola e a comadre Mariúcha. Nessas visitas, ouviam notícias da guerra no rádio do seu Nicola, transmitidas pela A Voz do Brasil.

Seu Nicola era calmo, mas sabia das coisas e falava para papai:

— Mussolini agora é aliado de Hitler. Os italianos vão sofrer muito nas mãos desses dois.

Parecia que o velho italiano adivinhava as coisas.

Mais navios brasileiros foram afundados. Getulio Vargas decretou o estado de guerra e o Brasil se viu envolvido em operações militares.

Aconteceu então a primeira “baixa” na nossa família.

Tio Armando recebeu uma carta com o emblema do Exército Brasileiro. Não houve muita conversa em casa (parece que o assunto era secreto...), mas minha mãe e minha tia entraram a chorar.

Tio Armando fez a mala e viajou para Três Corações, para apresentar-se ao Regimento de Cavalaria.

Assim, sentimos em primeira mão a desgraça da guerra.

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[1] (corruptela de bríscola, jogo de cartas apreciado pelos italianos naqueles tempos.

ANTONIO ROQUE GOBBO

São Sebastião do Paraíso, 23.07.2013

Conto # 797 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/05/2015
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