Isso é Que é Filha...

O homem, velho,feio, surrado, amarrotado, cansado, amargurado, enrugado, desdentado, desanimado, estava encostado nos ferros recurvados, que são o muro metálico da Cetesb, e sua cara era de enfado total. Meu humor também não era dos melhores e resolvi fingir que não o via. Encostei-me em um dos outros canos retorcidos, bem distante dele, e acendi um cigarro. Mas o homem era brasileiro e não desistia nunca de conseguir um papo se assim o resolvesse. E resolveu-se.

Aproximando-se de mim, deu um semi-sorriso irônico:

- Serviço púbrico…Bela merda, não é, amigo?

Procurei ser bastante receptivo ao papo iniciado por ele:

- Hum, hum…

- Óia que eu tô aqui desde as seis da manhã. Me dissero que abria às nove, mas cheguei mais cedo pra resorvê logo as coisa. São quase onze, e tô prantado aqui inté agora, esperano uns dicumento de uso campeão. Tô até com o protocoli nas mão, mas num tem jeito de arresorvê essa pendença.

- Chato mesmo.

- Meu terreno tem uns dois mil metro de área adevoluta e com minha arbitação no mei dele. Os homi chega lá e diz que tá tudo arregular. Já gastei uma dinheirama bissurda e até agora num resorvi coisa nenhuma.

- Chato mesmo.

- E minha famia abusa da minha paciênça pruquê diz que sou o mais ilustrado de todos ele. Eu que tenho que tomá a frente di tudo e quebrá os gai de tudo que aparece pela frente. Vê se pode uma coisa dessa.

- Abuso da família.

- Meu terreno tem umas prantação de primeira qualidade. Tenho cana, abóbra, mamão a dá cum pau, côve, ban-na-na, uns franguim, umas coisa que dá pra viver direitinho. Não é que cismaro que meu ipêveá do terreno tá tudo errado? Meu adevogado diz que tá tudo nos conforme, mas os homi daqui diz que tá tudo errado. Dá printeder uma côsa ansim?

- Difícil.

- É bom conversar com uma pessoa escrarecida como o senhor, mas agora vou lhe deixar em sussego. Minha fia tá chegano. Óia ela vino ali.

Eu “oiei” e fiquei besta ! Se a Camila é Pitanga, aquela era uma salada de frutas completa !!

Abestalhado, estupidificado, emocionado, atordoado e, porquê não dizer? até meio apaixonado, esperei pela apresentação paterna:

- Fia, esse moço aqui, pelo jeito, conhece tudo da Sabesp e pode ajudá nóis.

A filha deu-me a mão, abriu um sorriso que parecia a portaria do paraíso abrindo-se para mim, e disse-me, com uma voz maviosa ( que é voz maravilhosa elevada à milésima potência):

- Muito prazer, moço. Obrigado por ter orientado papai.

Sem a mínima idéia de como eu teria orientado o papai dela, tornei-me de repente um serviçal, humilde, prestativo, e até mesmo sequioso e obsequioso orientador de papais:

- Tenho um amigo aqui dentro que pode resolver os problemas dele em minutos. Um chefe de secção tão poderoso que até o presidente da empresa faz média com ele.

- É mesmo? No duro?

- Ô, se é…No duríssimo. O senhor seu pai me falava sobre usucapião…

- Uso campeão – corrigiu-me o mané pai da maravilha andante, respirante, provocante e insinuante pessoa.

- …e também sobre o protocolo que já conseguiu…

- É. Tô com os protocoli nas mão…- o diabo do velho interferiu novamente.

-…com esses documentos em mãos, tenho certeza de que meu amigo Lisindo Roberto não terá a menor dificuldade em resolver tudo num piscar de olhos.

- Moço, se o senhor conseguir isso eu nem saberei como lhe agradecer…

“Com um beijo, um afago, um rebolado ligeiro, uma promessa no olhar, uma licença para sonhar sonhos safados…Qualquer coisa me deixaria satisfeito…”- pensei com meu zíper. O que fica mais abaixo do cinto.

- Deixe-me ver os documentos, por favor.

A moça, se é que aquilo tudo era apenas e tão somente uma moça e não uma anja morena caída do céu naquela calçada, pegou os “dicumento” das mãos do pai e entregou-me. Cheia de esperanças no olhar, e eu a olhá-la cheio de esperanças.

Que coisa terrível constatei! Os documentos do homem não tinham nada a ver com a Empresa com o meu amigo Roberto, comigo, com coisa alguma naquele quarteirão. O tal “protocoli” era apenas a ficha para o velho falar com um funcionário qualquer da empresa. O assunto era dele concernente à Prefeitura de São Paulo. À sub-prefeitura de São Paulo. À sub-prefeitura que volta e meia vinha incomodar-me com a desculpa esfarrapada de que meu comércio era ilegal por não ter dela a devida licença. Afinal de contas eu não revendia os maravilhosos “produtos made in Paraguay”. Eu revendia apenas os nocivos, perigosos, e até mesmo viciantes artigos denominados vulgarmente de livros…

Maldita consciência. Malditésima burocracia municipal. Movido por famigerados princípios éticos, por desgraçados princípios morais, vi-me, inteiramente contra minha vontade, encaminhando os dois, pai e filha, para a quase vizinha sub-prefeitura sem ter conseguido pelo menos a gratidão total e imorredoura da morena deslumbrante. Deslumbrante, eu disse? Bota deslumbrante nisso.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 13/06/2007
Código do texto: T524990
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