As muitas flores do jardim (maio de 2015)

A quarta casa em uma semana. Estava já exausto daquele fardo. Pesado fardo um rastelo, luvas, tesoura gigante e um cortador de grama automático para carregar sozinho. Antônio combinava tudo pelo telefone, com antecedência. Depois, era torcer para São Pedro não mandar a chuva e então colocar as mãos na massa – ou melhor, no chão.

Jardineiro. Ocupação formal entre pedreiro e vigilante, transitando entre o jardim e a cozinha. A cozinha era o lugar da casa onde, decerto, haveria sempre alguma criada por quem cultivasse amizade. Mas nessa casa tudo era novo: novo trabalho, novo quintal; nova patroa e uma nova promessa de amizade na cozinha.

A dona da mansão parecia flutuar com o vento forte daquela manhã. Ria muito pedindo a Antônio para entrar na propriedade. Estava em gozo tocando os pés mansamente sobre a grama do jardim e falava muito – deitando uma interrogação no final das frases – mas sem permitir que Antônio respondesse, porque saltava de uma frase para outra.

Irritado, mal conseguiu dizer o nome, pois a madame de penhoar branco coberta por um véu esvoaçante, transparente, dardejava verborrágica e ameaçadora o jardineiro. Pisava a grama e enquanto isso gesticulava muito, emendando em cada sacolejar das mãos enormes um “quero aqui e ali”. Ele preferiu ouvi-la a ter que procurar outro trabalho.

Madame Eulália era carne de pescoço, mas procurar outro trabalho e deixar a madame na mão seria uma espécie de suicídio: nesse ofício, um cliente indica o outro e, por consequência, vai-se vivendo de cerca de uma dúzia de patroas satisfeitas que o indicam para novas patroas. Se pousasse mal na fita, uma única vez, perdia a recomendação.

Ela deixou-o sozinho, indo refrescar-se na piscina atrás da casa. O que precisasse, que chamasse por ela ou pela criada Cida, que prontamente o auxiliaria. Não sabendo por onde começar o trabalho, sentou-se encima de uma pedra do jardim, que ocupava uma das bordas. As ferramentas, deixou-as cair por um momento sobre a grama verdejante.

Era um jardim viçoso, em aclive. Do portão de entrada, subia-se uns quarenta degraus para alcançar a lateral de cima do jardim, que bordejava a construção. Ainda que as cores fossem muitas, na grama e nas diversas espécies de flores plantadas ali (o que demonstrava viço), as plantas e o chão de grama estavam muito maltratados.

Sussurrou a empregada da janela da casa para Antônio, “Ei, seu moço.” E acrescentou, “Tem mais o que fazer, não?” “Dona Eulália te pega aí deitado...” Ao que respondeu o jardineiro, “Não sou de preguiça, dona Cida”. E “Já vou me aprumando, uma vez que não se ofenda de me ofertar um copo d’água gelada, porque começo logo depois”.

Cida ouviu e não se fez de rogada. Em um instante estava do lado de fora da casa, ofertando à distância o copo d’água para Antônio. Esticava a mão para que o rapaz conseguisse alcança-lo, já que ela se posicionava na borda de fora do jardim, sobre a calçada de cacos de azulejo que margeava a mansão. Importante era não pisar a terra.

Depois, desapareceu para dentro da casa. Não queria papo com o jardineiro nem problemas com a madame. Era cedo ainda, mas já começava a preparar o almoço. Foi até a madame e perguntou se era comida para mais um, se o Antônio ia comer lá também. Costumeiramente, cozinhava para dois: para ela mesma e para Dona Eulália.

O marido costumava juntar-se às duas na hora das refeições, mas desaparecera havia dois anos e a madame sexagenária adaptou-se a uma vida solitária. Banhava-se ao sol diariamente, depois assistia televisão, e ia ao teatro ou ao cinema de taxi. Encontrava-se com Cida apenas no café da manhã e nas outras refeições do dia, que faziam juntas.

Antônio calçou as luvas e começou o trabalho puxando um pé de mato bem comprido, arraigado debaixo da pedra redonda do jardim. Depois, pegou o rastelo e roçou uma pequena porção de terra, arrancando todas as ervas daninhas que encontrava pelo caminho. Aí, ligou o cortador de grama e foi desbastando o mato, pouco a pouco.

O cortador de grama deixava em pé apenas as flores do jardim. Até que colidiu com a pedra ovalada, e um pedaço grande da pedra se soltou. Curioso, o jardineiro arrastou o pedaço de pedra – não sem dificuldade – e enfiou sua mão dentro do buraco que havia embaixo. Para sua surpresa, trouxe para fora um crânio. E havia mais ossos lá dentro.

Ninguém por perto, ninguém o vira ali. Tratou de devolver o crânio para dentro do buraco e fechou a cova com a pedra pesada que estava antes ali. Sem titubear, mas com o coração batendo tresloucadamente, prosseguiu com o serviço de cortar a grama do jardim. Podou com o cortador de grama a grama e com a tesoura podou as flores.

Também espalhou alguns sacos de terra preta pelos quatro cantos, adubando aquilo que, estranhamente, era um cemitério particular. Antônio nada sabia do desaparecimento do marido da madame, então não podia atinar sobre quem jazia debaixo daquela pedra. Mas, como aprendera vivendo, melhor não se meter nos assuntos alheios.

Ao meio-dia seu trabalho progredira. Mais da metade do jardim havia sido desbastada ou adubada. Foi quando Cida o chamou para o almoço, na cozinha. Embora dissimulando o susto, não conseguia disfarçar a curiosidade nas mãos da criada. Foram aquelas ou as da madame – talvez das duas juntas – que ocultaram o cadáver do jardim.

Antônio mirava de soslaio a ela e a madame – esta última, passara em revista pela cozinha para deixar algumas ordens a Cida. A madame elogiou o trabalho de Antônio e pagou-lhe adiantado. Depois, conforme disse, foi comer sozinha na sala de jantar e repousar. Esse dia, por ordens da madame, Cida almoçou na cozinha com Antônio.

A noite caía e o trabalho estava terminado. Antônio procurou avistar alguém para despedir-se, mas tudo o que havia por lá era o som alto de um televisor e nada mais. “É provável que seja o televisor da patroa”. Pensou. Por fim, recolheu os muitos sacos de lixo e os pôs fora. Para não chamar atenção, bateu de leve o portão e foi embora.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 26/05/2015
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T5255939
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