"A Devota" = Histórias de Amor Safado"

Quando, para imensa alegria de todos os livreiros, foi lançado no Brasil o “Novo Dicionário Aurélio”, grandão, grossão, capa preta com letras douradas, e que de imediato se tornou o sonho de consumo de milhões de brasileiros, eu e meu irmão fizemos uma promoção espetacular no Banco do Brasil e vendemos, em poucos dias, várias centenas do famoso “pai dos burros”. Ganhamos dinheiro à beça.
Para o grande sucesso da promoção contribuiu, e muito, a forma de pagamento que anunciamos: três cheques pré-datados, sem entrada, com trinta, sessenta e noventa dias para pagar sem juros. O pessoal fez fila pra comprar.
Resultado: no final da promoção nós tínhamos em mão uma enorme pilha de cheques. Dinheiro, que sempre é bom, só veríamos mais tarde. Em uma outra promoção em que o diferencial seria o preço menor que na praça, mas à vista.
Tive então a idéia de recorrer a um agiota para transformar em dinheiro os primeiros cheques, os que deveriam vencer em menos de trinta dias.
Indicaram-me um agiota que cobrava juros menores que os “urubus” que rodeavam a agência do Banco do Brasil, à espera de suas vítimas, e uma noite qualquer fui à casa dele com um belo maço de chequinhos amarelos. Um maço que pra segurar eu tinha que abrir quase que a mão toda.
Toquei a campainha e vi que me examinaram por quase um minuto antes de abrirem a porta. Não estávamos ainda nos tempos do porteiro eletrônico e outros itens de segurança.
- Boa noite, senhora. Eu quero falar com o seu Agenor.
- Boa noite. Pode entrar. É o senhor Fernando, não é?
- Eu mesmo. A senhora é a esposa dele?
- Sou sim senhor. Ele está esperando pelo senhor.
Que mulherzinha bonita, sô! E eu achando que agiota só se casa com mulher feia e por interesse…
Entrei meio sem jeito no suntuoso imóvel, que era um desses apartamentos que parecem ter o tamanho de um campo de futebol, e andei um bocado até chegar à sala.
- Boa noite, seu Fernando. Vamos ver esses chequinhos…
Entreguei o maço de cheques ao homem e me sentei à sua frente enquanto ele contava os cheques de iguais quantias.
- Bela grana, bela grana…O senhor já sabe quanto cobro de juros?
- Cinco por cento. Foi o que me informaram.
- Mas seus cheques são de curto prazo. Vencem daqui uns quinze, vinte dias..
- Quase trinta dias, seu Agenor, e se for pra cobrar mais do que cinco por cento, pode me devolver sem problema algum.
- O que é isso, meu jovem? Está muito agitado, meio nervoso…Vamos ver o que dá pra fazer.
O homem pegou uma calculadora e começou a bater o valor de cada cheque. Eu ri, olhando pra ele e ele me olhou com estranheza:
- Não me diga que o senhor vai digitar nessa coisinha cheque por cheque. O senhor não viu que os cheques são todos do mesmo valor?
- E daí?
- Daí, meu caro senhor, que basta o senhor contar os cheques e multiplicar o número deles pelo valor. Depois é só deduzir os juros e me passar a grana.
A mulher dele, sentada à minha frente, riu do marido e ganhou um olhar tipo “depois te pego, desgraçada”. Sem jeito, ele quis argumentar para não dar o braço a torcer:
- É que desse jeito eu verifico cheque por cheque. Cada um tem seu jeito de trabalhar.
- Tudo bem, seu Agenor, faça como quiser. Agora à noite eu tenho todo o tempo do mundo.
Enquanto o sujeito digitava valor por valor, concentrado, imerso em seu mundo de números, eu e a esposa dele nos olhávamos com simpatia mas calados. Eu com a maior vontade de piscar pra ela…
De repente veio de algum lugar um cheirinho maravilhoso de bacalhoada. Bota maravilhoso naquele aroma…Era divino. Fechei os olhos, aspirei o que pude daquele perfume culinário e vi que ela fez o mesmo.
- A senhora está fazendo bacalhoada?
- Quem me dera…Deve ser a vizinha do andar de baixo. Bacalhoada aqui é difícil…
Ao ouvir isso o marido parou de contar cheques e encarou a mulher com cara de ódio:
- Vê lá o que fala, mulher. Já te disse que logo vamos ter bacalhoada. Tenha um pouco de paciência.
- Paciência, paciência, paciência…Acho que vou ter que esperar que tu fiques milionário pra “compraire” um quilozinho de “vacalhau” que seja. Já estou farta de ter paciência.
Só aí reparei que ela era portuguesa e que lhe restava ainda um pouco do sotaque da terrinha lá dela.
O agiota fechou ainda mais a cara, mas a mulher já havia disparado e não pararia tão cedo.
- Ele me faz “esperaire” pelo meu irmão que nos traz “vacalhau” quando volta do Natal em “Lisvoa”. O senhor acredita numa miséria dessas?
Para evitar uma cena na presença de um estranho, e para que eu fosse embora logo, o agiota contou os cheques, multiplicou-os pelo seu valor, deduziu os juros e foi buscar o dinheiro lá pra dentro da casa dele.
De propósito, como vingança, levei um bom tempo contando e recontando o dinheiro que recebera, somando uma nota à outra em voz alta. Enquanto isso os dois rosnavam discretamente a um canto da sala.
- Tudo certinho, seu Agenor. Boa noite e até outro dia.
- Da próxima vez o senhor me avise com antecedência. Não é todo dia que tenho dinheiro em casa.
- Sem problema. Dê-me seu telefone, por favor.
O sujeito anotou os números e deu-me o papelzinho.

No dia seguinte eu o vi à porta do banco, do mesmo jeito que os outros agiotas que faziam ponto no bar do outro lado da rua, e corri para o telefone público do saguão do BB.
- Alô, dona Elvira? Bom dia. Sabe quem está falando?
- Ora, pois…E não ia reconhecer-lhe a voz, seu “Furnando”?
- Dona Elvira, o motivo do meu…
- Elvira, schifazfavoire…
- Elvira, não me leve a mal, mas a verdade é que estou ligando para convidá-la a compartilhar uma belíssima bacalhoada comigo.
- E onde “siria”?
- No melhor lugar que eu conheço pra se comer uma bacalhoada: em minha casa. Uma bacalhoada feita com todo o carinho do mundo, com todo o capricho, acompanhada de um vinho à sua escolha e tudo mais que for necessário.
- E quando “siria”?
- Que tal amanhã?
- E a que horas “siria”?
- Seu marido costuma estar fora a partir de que horas?
- Ele sai às seis da manhã e só volta à noite, trazendo nas algibeiras o suor de muitas gentes.
- Pego-a na esquina de sua casa à uma da tarde. Está bem assim?
- Estará ótimo. Estarei esperando ansiosa pelo senhor.
- Por você.
- Por você.
Nem trabalhei naquele resto de dia. Corri ao famoso armazém do centro da cidade, um que tinha de tudo do bom e do melhor, comprei a melhor, mais bonita e mais cara posta de bacalhau da casa, um vinho que o português me recomendou até meio emocionado, algumas outras coisas das quais já não me lembro, e sai da casa comercial mais tosquiado que ovelha na época certa. Êta bacalhoada cara…

Gente, a portuguesa estava mais do que uma beleza! Estava uma coisinha de babar só de olhar e entrou em meu carro com um sorriso que me deixou louco de..de..alegria, digamos assim.
O almoço transcorreu divinamente. Comíamos bem, bebíamos direitinho, conversamos assuntos diversos e ligeiros, rimos muitas vezes e antes que sentíssemos vontade de arrotar, o que um jamais faria na frente do outro, já éramos amigos de infância e eu conhecia todas as infâmias que o agiota praticara contra ela com suas misérias de muquirana contumaz.
Feita a digestão, depois de um certo tempo mais ou menos jogados nos sofás, coloquei um disco no…como é que chamava mesmo?..Não, não era mais vitrola nem rádio-vitrola. Tinha um nome mais moderno. Acho que era aparelho de som. E a tirei para dançar.
Dançando lentamente, muito lentamente, fomos em direção ao corredor, do corredor ao quarto, da porta do quarto até a cama, da cama até os primeiros carinhos, dos primeiros carinhos à preocupação de uma congestão, logo ultrapassada, e foi nessa época que constatei que realmente as portuguesas são as mulheres mais católicas do mundo. A cada arremetida de meu corpo ela gritava extasiada:
- Ai, Jesus…Ai, Jesus…Ai,ai,ai,ai Jesuuuuuuuuuuuuussssssss
Também dei uma de católico:
- Ai, meu Deus, como você é gostosa…
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 14/06/2007
Reeditado em 20/06/2007
Código do texto: T526968
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