"Um Homem Exigente" = Histórias de Amor Safado.

Gente, eu juro que não estou exagerando, nem é implicância de minha parte, mas aquele meu ex-colega japonês precisaria de umas cinco plásticas bem feitas para se tornar um cara apenas feio. Ficaria feio se melhorasse muito a fachada dele. A boca era uma espécie de talho comprido e fino que ia de lado a lado da cara do coitado. O nariz era uma espécie de batata achatada; os olhos duas fendas escondidas em um monte incrível de rugas de todos os tamanhos; a absurda cabeleira negra, que espalhava cabelos por todas as direções, começava a apenas uns dois centímetros, se tanto, acima das sobrancelhas; e as orelhas pareciam dois leques abertos. O coitado era um pavor ambulante. Isso, com muito boa vontade de minha parte…
Meu amigo Lípolis olhava para ele e ria abertamente:
- Ô Shimimotoko Sayonara, mania feia essa sua de fazer careta o tempo todo…
O japonês apenas ria e não dizia nada.
Lípolis continuava com a provocação:
- Você nasceu feio assim mesmo ou foi ficando depois de grande? Quer dizer, depois de menos pequeno?
Ele apenas ria, coçava o queixo e jamais respondia.
Às vezes eu, com pena do estrupício, interferia, falando bem baixinho:
- Pô, Lípolis…O coitado já é feio, já deve ter um monte de problemas com a cara que tem, e você ainda fica enchendo o saco dele, meu amigo…Falta de piedade, cara.
- Que nada, Fernando. Ele é meu amigo. Não está ligando nem um pouco.
- Cuidado, cara. Cuidado. Esses caras muito calados são perigosos…
- Não esquenta a piolhenta, meu amigo. Eu sempre sei com quem estou mexendo. Um dia desses nós vamos tomar umas cervejas com ele e você verá quem é o tipo.
Algum tempo depois, reunidos em São Paulo, saímos em turma grande pra tomar cerveja e comer uns tira-gostos em um barzinho que estava ficando famoso na Lapa.
À minha frente sentou-se o cruzamento de cruz-credo com espantalho, e ao meu lado ficou o Lípolis, o gozador-mor da turma.
O Lípolis me cutucou:
- Depois da quinta cerveja o japonês vai começar a falar.
E riu por antecipação.
Não deu outra. Depois de algumas rodadas o colega nissei começou a falar de sua vida. E começou bem.
- Colegas, eu sei que não sou propriamente um cara bonito…
A essa altura minha boca quis manifestar-se em uma sonora gargalhada, mas eu a travei com os maxilares, os dentes me ajudaram, e dela escapou apenas um som que parecia o de um cachorro engasgado..
-…mas eu vou dizer uma coisa pra vocês: mulher, pra sair comigo, pra eu levar pra cama, tem que ser virgi . Mulher estreada eu não pego de jeito maneira.
Parou de falar e olhou em volta, talvez querendo ver o efeito de suas humildes palavras. Vendo que todos os olhavam seriamente e com atenção, tomou coragem e foi em frente:
- Sou um cara pra lá de “ijigente”. Se eu sospetá que a mulher é ordinária, que já conhece home, dô um pé na bunda e mando pra outra freguesia.
Nossa turma, com exceção dele, era de velhos amigos e colegas de trabalho. Cada um de nós conhecia razoavelmente os outros, mas só Lípolis conhecia a figura que agora prendia nossa atenção. Não foi preciso sinal algum, troca de olhares nem nada para que todos entendessem que devíamos dar corda ao tipo estranho. Já que ele estava disposto a falar, ouviríamos educadamente,
- Minha família é muito rica, “num” sabem? Meu pai tem dinheiro a dar com o pau, e eu sempre tive do bom e do melhor na vida. Foi isso que me fez ficar “ijigente” com mulher.
Durante um bom tempo ele monologou, e nós bebemos olhando para ele. Contou sobre a riqueza da família, da importância social de cada um de seus irmãos, da importância da família da mulher dele, da inteligência absurda de seus filhos- que nesse ponto puxaram a ele- dos carros que a família possuía, do quanto ele poderia dispor em dinheiro com um simples estalar de dedos, e falou, falou, falou, falou até encher o saco.
De repente ele se levantou e disse que ia ao banheiro.
Assim que sumiu de nossas vistas, caímos na risada.
- E aí, Lípolis? Foi você quem apresentou essa figura à empresa? O cara não sabe nem um português quebra-galho, meu chapa.
- Eu, hein? O cara é doido. Ele se esquece que sou vizinho dele e dispara a contar mentira atrás de mentira. O pai é um chacareiro que acorda as cinco da manhã e passa a manhã inteira regando as couves ou sei lá o quê. Os irmãos têm um postinho de gasolina que mal deve dar pro gasto, e o bonitão aí só traça virgi..Agora todo mundo calado que o estraçalhador de corações vem voltando.
- Banheiro nojento…Tô acostumado com mármore e tive que mijar nessa “mundíce” fedorenta..
Todos nós concordamos, apesar de não termos, ainda, ido ao banheiro daquele bar.
- Amigos, tava pensando enquanto mijava: se vocês, qualquer um de vocês, precisar de uma orientação, uma “tênica” especial de vendas, por favor, não deixem de “me procurar-me”. Aprendi muito quando vendia telefones e posso ajudar bastante se alguém precisar.
Todos nós agradecemos penhoradamente e prometemos procurá-la quando tivéssemos qualquer dúvida. Quanto ele devia ter aprendido enquanto vendia telefones…o maior sonho de consumo daquela época, mais fácil de vender que pipoca em porta de cinema ou água no deserto.
Eu estava estranhando o Lípolis manter-se calado, sem brincar, sem fazer gozação alguma, deixando o pobre coitado exibir-se à vontade sem que ríssemos da cara dele ou da maneira que ele se expressava. Acho que na verdade estávamos todos era com muita pena do bocó exibido.
A certa altura duas moças altas, elegantes e perfumadas, entraram no bar e o garçom correu a atendê-las com o máximo de solicitude. As duas sentaram-se bem perto de nossas mesas unidas e logo dois belos pares de pernas eram exibidos sem qualquer acanhamento por baixo da mesa à nossa frente. À frente de nossos olhares cobiçosos.
Foi aí que Lípolis começou a demonstrar que continuava sendo o mesmo de sempre. Virou-se para o japonês e cochichou de maneira que todos nós ouvíssemos:
- Ô Shimimotoko Sayonara, nessa mesa toda só há um cara capaz de ganhar uma daquelas moças. Ou até as duas de uma vez. E esse cara é você. Vai lá, amigo. Vai lá e traga as moças pra nossa mesa.
- O colega poderia parar de me chamar de Shimimotoko?. Esse nome não existe…
- É só um apelido carinhoso. Em japonês antigo quer dizer “pequeno nobre bonito e charmoso”. Vai lá, cara. Vai lá e mostra sua competência.
"Shimimotoko" levantou-se, ajeitou as largas calças, arrumou a camisa sob a cintura, ajeitou a gravata, alisou a cabeleira para trás, e partiu em direção à mesa das moças um tanto quanto cambaleante.
Alguns segundos depois colava a boca à orelha da mais bonita das duas linduras e dizia alguma coisa comprida. Ela riu, cochichou com a outra e as duas o fizeram sentar-se à mesa delas.
Meia hora se passou e nada do japonês voltar à nossa mesa. Nem com as moças nem sem as moças. E intrigados, víamos os três rindo de chorar. Ele nem nos olhava. Pegava na mão de uma delas, no braço da outra, no pescoço de uma, no ombro de outra, e a risadaria corria solta.
Uma hora e tanto depois, já empanturrados de cervejas e salgadinhos, resolvemos ir embora.
Ao mesmo tempo que nossa conta chegou à nossa mesa, as duas moças se levantaram, passaram os braços sobre os ombros de nosso colega mentiroso e saíram os três do bar abraçados e cantando alguma coisa estranha. Ele nem olhou para o nosso lado.
Estranhei o fato de os três terem saído sem chamar o garçom, sem pagar a conta, e o homem no caixa me explicou o que havia acontecido.
- Essas duas moças são as donas verdadeiras do bar. Eu sou só o “dono” fantasia. E as duas são uma coisa de doido: elas adoram tudo que é tipo esquisito, estranho, maluco, diferente. Quando encontram alguma coisa desse tipo, elas não têm dúvida: levam para cama e se divertem até o troço fazer bico. Mas esse espantalho de hoje bateu o recorde…
No dia seguinte ele nos jurava, de pés juntos, que as duas eram “virgis”.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 14/06/2007
Reeditado em 29/07/2007
Código do texto: T526991
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