"Saindo do Sério" - Histórias de Amor Safado.

Naquele tempo eu andava tão cansado, tão desanimado e tão de saco cheio quanto todos meus colegas vendedores hospedados naquele genérico de hotel no interior dos cafundós do ânus do Brasil.
Pra piorar tudo, ainda estávamos trabalhando em uma cidade que parecia ser habitada só por doutorandos em ignorância, peagádês em burrice e mestrandos em grosseria e estupidez. Cidadezinha do cacete aquela…
Eu olhava para as caras dos colegas na mesa de almoço do hotel e tinha vontade de xingar todo mundo. Eram várias caras de bundas tristes olhando para o vácuo, para a toalha, para o saleiro. Clima de velório. E de velório de gente amada.
Resolvi animar um pouco o ambiente e comecei a falar com toda seriedade a ninguém em particular:
- Meus amigos, a barra tá pesando mesmo.
Pra todos nós. Se continuarmos desse jeito, teremos que fugir de madrugada pra não pagar o hotel, mas quero contar pra vocês uma coisa boa que acontecia em uma das mais tristes fases de minha vida…
Com algum esforço e muita preguiça todos levantaram os olhares para mim.
-…eu aprendi um dia que, por pior, por mais terrível que seja a situação, sempre aparece alguma coisa boa, alguma coisa pra alegrar a vida da gente. Vocês querem um exemplo? Aqui vai: na pior das piores épocas da minha vida, quando eu não tinha dinheiro pra cortar o cabelo, pra fazer a barba, pra mandar lavar minhas roupas, ou pelo menos para comprar um par de meias novas, a mulherada dava direto em cima de mim. Uma coisa impressionante. Não ficava meia hora sem uma mulher dando em cima de mim…E dando pra valer.
A essa altura os colegas não se limitaram a apenas olhar em minha direção. Manifestaram-se calorosamente:
- Lá vem conversa fiada…Vai me dizer que era seu tremendo charme…
- Sempre metido a conquistador…Lá vem papo furado…
- Estava na merda, era pobre, mas era o gostosão do mulherio; vai ver…
Esperei que a tempestade de “amáveis” comentários amainasse e expliquei, humildemente:
- Colegas, por favor, deixem-me explicar: nesse tempo de pobreza absoluta eu morava no porão de um puteiro. Era por isso que a mulherada dava direto em cima de mim. ´Cês não me deixaram acabar de contar…
Consegui o que queria: todos riram com vontade.
- Esse cara inventa cada uma…Todo mundo puto da vida e ele fica imaginando uns troços pra fazer a turma rir.
Uma das colegas mais simpáticas e bonitinhas perguntou-me quando parou de rir:
- Colega, não há nada que tire você do sério?
- Claro que há, minha querida: um tapa no saco, gente mordendo maçã perto de mim, cretino que chupa a sopa da colher à distância, gente fungando, gente que fica falando rã-rã-rã-rã enquanto a gente explica alguma coisa, mas o que mais me tira do sério é grosseria. Não sei se é porque sempre tratei todo mundo com educação, mas se tem coisa que me tira do sério, que me deixa louco da vida, é grosseria. Ainda mais quando é gratuita, sem motivo algum. Eu “subo a serra” e acabo até fazendo besteira de tanta raiva.
- Como a gente se engana…Eu jurava que você era a pessoa mais pacífica, tranqüila e sossegada desse mundo.
- Impressão sua, minha cara. Só impressão. Sou um cara bem humorado, mas não tenho sangue de barata. Quando pisam no meu calo o sangue esfria e viro besta-fera. Já levei muita porrada bem dada por causa disso.
Nos poucos minutos que conversei com a colega, Vânia, percebi que o ambiente na mesa melhorara depois de minha brincadeira sobre o porão do puteiro. A turma ria, conversava, trocava idéias e, principalmente, comia com apetite.
Ela também olhou para os outros colegas e sorriu pra mim:
- Você relaxou o ambiente. Vamos fazer uma dupla hoje?
- Vamos. Estou a fim de sair com uma gostosinha.
- Franco, direto e objetivo. Você me fascina.
- Nasci assim, meu anjo. O que posso fazer? Você não se lembra que a mulherada dava direto em cima de mim?

Trabalhar em dupla era uma forma de amenizar o castigo que era batalhar por vendas naquela coisa infecta a que davam o pomposo nome de cidade. Um povoado metido a besta onde se respirava uma poeira vermelha, se curtia um calor de rachar coquinho na sombra, e se encontrava mais gente assassinada nas ruas do que lixo nas calçadas. Uma meeeeeerda de lugar. Horrível, fedida, mal cheirosa e mal cuidada povoação brasileira.
Eu e a colega subimos uma rua estreita e saímos em uma estrada asfaltada. Estreita, sem sinalização, mas asfaltada.
- Você viu, minha querida? Quem disse que essa bosta de cidade não tem asfalto em lugar nenhum?
- E não é que tem? Deve ser o único trecho preto da cidade. Onde será que vai dar isso?
- Sei lá, mas vamos em frente. Vamos curtir essa brisa amena de 50 graus à sombra e ver onde sai esse caminho liso.

O caminho liso, bem asfaltadinho, terminava em um galpão imenso. Bem na porta de um galpão imenso onde se lia na fachada: Beneficiadora Continni.
- Beneficiadora…Será que beneficia vendedores de livros?
- Só vamos saber perguntando. Quer ir primeiro ou quer que eu vá?
- Vamos juntos, mas você, mulher e bonita, faz a aproximação. Depois eu entro com o meu “papo infalível”.
Entramos no tal galpão, que parecia, pelo tamanho, poder guardar alguns aviões a jato, e vimos ao longe um grupinho conversando em volta de uma mesa.
Aproximamos-nos devagar e respeitosamente do grupo e os cinco homens pararam de falar e nos encararam.
- Com licença, senhores. Com licença. Podemos conversar com os senhores? Com licença…
Quatro dos homens ficaram calados e apenas nos olhavam. Apenas um deles se manifestou:
- O que é que vocês querem aqui? Posso saber?
- Claro, senhor. Nós somos da…
- Vendedores de livros? Já vi que são vendedores de livros. Vão à puta que os pariu! Sumam daqui! Caiam fora! Vão tomar no cu! Não encham o saco. Vamos, vamos, vamos, sumindo daqui e bem depressa.
A colega não ficou pálida. Ficou transparente. Eu não consegui abrir a boca. Apenas olhei para o animal que berrava e senti meu sangue congelando nas veias.
Nem eu nem ela demos um passo para a frente ou para trás.
- Já não mandei cair fora, seus filhos da puta? Vão andando, vão andando, seus merdas.
Continuamos estáticos. Apenas olhando para ele e percebendo que os outros quatro também o faziam. Apenas olhavam para ele.
Ímpetos assassinos percorreram meu corpo da cabeça aos pés. Senti que estouraria em segundos, mas contive-me a tempo e peguei a colega pelo cotovelo.
- Vamos, menina. Vamos indo.

Chegando à porta do galpão entramos à direita e pegamos a estrada asfaltada calados. Ela quis falar alguma coisa e eu não deixei.
- Por favor, mina querida, fique bem quietinha, bem caladinha por alguns minutos até que eu ponha minha cabeça em ordem.
Ela obedeceu e encostamos-nos em uma árvore imensa. Ela com os olhos marejados de lágrimas e eu me esforçando para fazer minha respiração voltar ao normal. O que demorou um bocado.
Quando achei que conseguiria falar normalmente a única frase que saiu foi:
- Eu vou matar aquele cara.
Ela virou para mim o rostinho molhado de lágrimas silenciosas e respondeu:
-Que dá vontade, dá mesmo.
Mal ela acabou de falar e um carro passou por nós levando em seu interior os outros quatro que estavam com tal filho da puta grosseirão. Senti uma alegria imensa.
- Menina, os quatro caras foram embora juntos. O animal ficou sozinho lá no galpãozão!
- E daí, colega?
- E daí, moça, que eu vou dar uma lição nele. Uma lição pra valer.
Corri em direção ao galpão e ela veio atrás querendo segurar-me ou falar alguma coisa que eu não queria ouvir por saber como são as mulheres em certas horas. Ou nos metem em frias tremendas ou fazem de tudo para evitar que saiamos na porrada.
O tal galpão tinha o chão forrado de umas coisas fofas que depois vim a saber que eram cascas de cereais e o sujeito nojento não ouviu meus passos. Não percebeu minha presença até que cheguei a meio metro dele e o peguei pelo colarinho da camisa.
- Repita agora, seu filho de uma puta, todos os atrevimentos que você nos fez. Repita um por um, corno dos infernos.
O sujeito não conseguiu abrir a boca de tanto medo e apanhou muito. Muito mesmo. Dei nele todas as porradas que eu gostaria de ter dado naquela população escrota daquela cidade nojenta. Bati com firmeza, sangue-frio, vontade e força total. Por um bom tempo. A colega apenas nos olhava com os olhos tão arregalados como se visse fantasmas ou demônios. Até que, de repente, agarrou meu pescoço com os dois braços e gritou em meu ouvido que eu parasse de bater no sujeitinho.
Saí dali com a mão direita imprestável por alguns dias e pegamos a estrada em silêncio. De mãos dadas.
O silêncio foi quebrado por ela:
- Puxa vida! Você bateu tanto naquele homem que achei que ia matá-lo.
- A vontade era essa. O desgraçado te xingou como se você fosse uma prostituta.
- E onde você aprendeu a brigar desse jeito?
- Naquele galpão.
- Foi sua primeira briga?
- Depois de adulto foi a primeira. Na infância e adolescência tive muitas, mas nunca tão sérias e com tanto ódio. Eu podia ter matado aquele desgraçado. Ainda bem que você não deixou.
- Ainda bem que eu não deixei, não é mesmo? Nossa mãe!! Você jogou o cara pra cima igual um boneco de pano.
- Era um cagão, um covarde, um bosta que só é valente quando tem amigos por perto. Se ferrou comigo…Pode reparar, minha querida, todo sujeito muito grosseiro é um cagão. A grosseria é a fantasia do fraco.
A verdade é que a adrenalina ainda percorria meu corpo em ritmo acelerado e eu tremia todo de raiva, de ódio, de vontade de continuar a massacrar o miserável, mas ao mesmo tempo dava graças a Deus por ter parado antes que fosse tarde demais. Antes que eu me tornasse um assassino.
Caminhamos calados por mais algum tempo e mais uma vez ela quebrou o silêncio:
- Não vamos para o hotel não. Vamos dar uma entradinha nesse matagal e procurar um lugar legal pra gente descansar. Vem…
Eu fui e descobrimos um laguinho, pouco mais do que um veio de água cercado por um verde alegre e uniforme.
- Que lugar lindo! Vamos, meu querido, vamos nos deitar um pouco aqui e relaxar.
Nós nos deitamos, relaxamos, acabamos rindo, nos abraçando, nos beijando, trocando carinhos e…bem, chegamos ao hotel bem…digamos, relaxados até demais.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 15/06/2007
Reeditado em 20/06/2007
Código do texto: T527417
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.