"Morena, linda, sensual, de olhos verdes" - Romance - Capítulo 2

"Morena, linda, sensual, de olhos verdes" - Romance - Capítulo 2

Agora, pretendendo imitar o profissional que tanto admirava, Wilson, sentado no banco ao lado do cobrador do ônibus, observava atentamente os passageiros que ultrapassavam a catraca. Não precisou esperar muito para ver um senhor de meia idade tirar do bolso um pequeno bolo de dinheiro graúdo, escolher entre elas uma nota pequena, pagar a passagem, e depois guardar a grana em outro bolso; não o da calça, de onde o tirara, mas no da camisa, por trás do maço de cigarros.
Wilson sorriu, levantou-se, e foi seguindo o homem pelo corredor apinhado de gente do coletivo. Apoiou a pasta de plástico que providenciara premeditadamente quase que na altura de seu próprio pescoço, na horizontal, e segurou-a com a mão esquerda, aproximando-se do velhote. Era uma posição bem estranha para se carregar uma pasta, mas bem apropriada para, por baixo dela, enfiar os dedos médio e indicador no bolso da camisa do homem e de lá pescar o dinheiro. Para o bom êxito de sua primeira tentativa na nova especialidade achou por bem distrair sua vítima:
- Moço, sabe me informar se esse ônibus vai pro centro? Sabe se vai? Vai pro centro ou não vai?
Talvez pela insistência desnecessária, pelo tom um tanto quanto ansioso demais, pela chatice com que repetiu a pergunta, o homem olhou-o com estranheza e não respondeu. Fosse Wilson mais esperto do que se julgava e teria percebido que alertara o homem em lugar de distraí-lo. Tentou ainda mais uma vez:
- Vai para o centro esse ônibus, moço? Sabe me informar? – enquanto perguntava tentava enfiar os dedos e pegar as notas.
- Se vai para o centro ou não, menino, eu não sei, mas você vai pro inferno agora mesmo se não tirar a mão de meu bolso, seu filho de uma puta.
- Que isso, moço? Eu não sou de fazer isso não, moço. Não sou dessas coisas. De maneira alguma eu faria…
- Vá saindo de fininho, seu merda, se não quiser apanhar aqui mesmo.
Wilson saiu depressa de perto do velhote, deslizou por entre a massa humana espremida em pé dentro do ônibus, e aproximou-se de outro senhor que estava de costas para ele, e que parecia bem mais velho que sua quase primeira vítima devido aos cabelos inteiramente brancos. Sem qualquer receio ou cerimônia, enfiou a mão no bolso direito da calça do homem. Não era mesmo seu dia de sorte. Tão logo acabou de enfiar a mão e a teve presa, bem presa, pela mão forte do “velho”. De idoso o homem possuía apenas os cabelos muito brancos. O rosto e o corpo eram de um adulto fortíssimo, atarracado, musculoso e disposto a dar-lhe uma lição que valeria por toda sua vida.
O homem encanecido virou-se, tirou a mão de Wilson de seu bolso pelo pulso e passou a dar-lhe uma seqüência de fortes tapas na cara. A cabeça de Wilson virava de um lado para o outro e as bofetadas estalavam alto. Alto o suficiente para que fossem ouvidas por todos em todo o ônibus. Em rapidíssima sucessão, foram dezenas de taponas na cara do jovem ladrão. Wilson teve a pavorosa impressão de que o homem nunca mais pararia de bater nele, mas, de repente o homem parou. Mas foi apenas para virá-lo de costas, torcendo-lhe o braço, para passar a dar-lhe murros na coluna e na cintura.
Alguém gritou lá do fundo:
- Chega, coroa. Desse jeito vai matar o menino. Já exagerou.
O homem suspendeu um pouco a surra, deu um sorriso e desafiou:
- Chega porquê, seu corno? Quer apanhar no lugar desse bandidinho de merda? Se quiser, pode vir. Qualquer um que quiser tomar o lugar dele é só aparecer e apanhar pelos tais “direitos humanos”…
Ninguém aceitou o desafiou e o homem voltou ao que fazia. Para total desespero de Wilson, com o mesmo vigor de antes. O velhote, o outro, o que trazia o dinheiro no bolso da camisa, sorria satisfeito e aproveitou para comunicar:
- Esse porrinha tentou tirar meu dinheiro também. Dei-lhe uma dura e ele resolveu tentar com o senhor. Em que fria ele se meteu…
Alguns garotos que tentavam aproveitar a confusão para sair sem pagar a passagem começaram a gritar em coro: “Mata, mata; se crescer vai virar vereador em São Paulo…” E muita gente ria, ao mesmo tempo que sentia pena do garoto que apanhava tanto. Wilson conseguiu perceber, com ódio, que Orlando era um dos que incitava o homem a matá-lo. Uma mocinha chegou a tentar segurar o braço do agressor, mas foi por ele educadamente repelida: “Não se meta, minha filha. É assunto meu. Responsabilidade minha.”
O motorista resolveu parar o ônibus e ver como ficariam as coisas. O ladrão era, evidentemente, menor de idade, e fazia tempo que estava apanhando. Podia até morrer o moleque e as coisas poderiam se complicar também para o lado dele. Achou melhor intervir.
- Olha moço, o senhor está com toda a razão; a figurinha aí merece mesmo apanhar. Até já é meio conhecida aqui na linha, mas acho melhor o senhor parar de bater nele. O moleque pode morrer, sei lá, e o senhor se complicar…
O “justiceiro” olhou para o motorista e riu:
- Complica coisa nenhuma, meu amigo. O sem-vergonha aqui é menor de idade, novinho, mas se deu mal. Meteu a mão no bolso de um coronel da polícia militar. E coronel da ativa. Ele ainda não viu nada…Faço questão de levá-lo pessoalmente à delegacia.
Descendo do ônibus com Wilson à sua frente, o coronel apertou ainda mais o arrocho que dava no braço do jovem meliante. Wilson tinha a impressão de que sua mão estouraria logo mais, de tanto sangue que nela se acumulara. Tonto, depois de tantos tapas e murros, e achando que ia morrer de dor, moído de pancadas, acabou deixando as lágrimas escorrerem livremente rosto abaixo. A esperança que nutria era que isso comovesse o homem. Antes não chorara para parecer indignado, e não culpado. Queria explicar que fora apenas um engano, mas foi difícil falar com tantos tapas comendo solto em seu rosto.
O coronel olhou-o nos olhos, viu as lágrimas banhando seu rosto imberbe e infantil, e soltou uma risada.
- Chorando, nenê? Porquê? Você ainda nem começou a apanhar de verdade…Fui até carinhoso…Você sabe como é; né? Muitas testemunhas…o povão olhando…Lá na delegacia a gente vai conversar melhor, vai poder ter mais intimidade, falar mais francamente…Aí sim, você vai ver como é boa e fácil a vida de um punguista. Das duas uma: ou você volta para o bom caminho, se é que um dia andou por ele, ou fica calejado o bastante para apanhar pelo resto da vida.
Um camburão da polícia passou na avenida e o coronel fez um sinal autoritário. Nem precisou identificar-se. Seria reconhecido pelos policiais a qualquer distância.
- Tudo bem, coronel? Tudo em ordem? O que está havendo?
- Quase nada. Foi só esse moleque que escolheu mal a vítima e tentou me roubar. Enfiou a mão em meu bolso e levou umas palmadas para aprender . O que vocês acham? Ele tem cara de quem precisa apanhar mais ou de quem já aprendeu?
Os policiais olharam para Wilson e riram alto.
- Esse aí, coronel? Esse não vai aprender nunca. Já nasceu pra levar essa vida mesmo. Conheço a peça. É filho do Waldemar do Sindicato, aquele ladrãozinho chulé do cais do porto. Gente fina, finíssima…A gente leva o pilantra ou o senhor quer ir junto?
- Vamos dar um passeio com o pimpolho do Waldemar. Não quero que ele sinta saudades de mim.
Os policiais pegaram Wilson pelas roupas e jogaram-no com violência na traseira do camburão. Magrinho, muito leve, o impulso excessivo fez com que ele batesse a cabeça no fundo da viatura e caísse desmaiado no chão do veículo.
Só acordou do desmaio quando a viatura parou em um lugar qualquer e os policiais o puxaram para fora pelos pés.
- Acorda, vagabundo. O coronel ainda quer dar uma palavrinha com você. Acho que quer se despedir.
Wilson, ainda tonto, de pé perto da porta da viatura, ficou cara a cara com o coronel e quis mostrar-se simpático:
- O senhor quer falar comigo? Estou às suas ordens, coronel.
- Está mesmo? Que bonitinho…Menino de dedos leves e bem educadinho…Uma gracinha de rapaz…É bem pouco o que tenho a lhe dizer, safado.
Wilson não percebeu o soco a caminho e foi como se o pára-choque de um caminhão houvesse batido em seu rosto. Caiu desmaiado de novo e não sentiu na hora os pontapés que os policiais distribuíram por todo seu corpo até que um outro camburão surgiu e o coronel embarcou nele depois de dar a ordem de que parassem de bater no pivete.
A surra já fora suficiente, em sua opinião. Mais do que aquilo seria selvageria.
= Continua amanhã.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 15/06/2007
Reeditado em 20/07/2007
Código do texto: T527420
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