"Doida Por Um Book" = Histórias de Amor Safado

Não consegui dormir quase nada naquela noite. Revirei-me na cama o tempo todo, acordando a toda hora, maquinando mil maneiras de levantar um dinheiro rápido. Emprestado que fosse.

Na véspera, um de meus fornecedores de coleções de livros havia feito uma proposta que me deixou tremendamente entusiasmado. Entusiasmo que, é claro, que não demonstrei de maneira alguma a ele. Respondi apenas que pensaria nela durante um ou dois dias e só então lhe daria uma resposta. Claro que o que eu queria era apenas ganhar tempo para levantar o dinheiro e, se ele, raposa velha e mais do que esperta, percebesse meu entusiasmo, daria um jeito de aumentar um pouco o preço. Ou muito.

O motivo de meu desespero naquela noite, como em muitas outras de minha vida, era a falta de um capital imediato para um excelente negócio. Tudo que eu tinha no momento estava investido em mercadorias. Caixas e mais caixas de coleções de livros entupiam boa parte de minha casa, e nada se vende tão devagar quanto aquilo que se precisa vender depressa.

Surgira a chance, maravilhosa e inesperada, de adquirir, a um preço espetacular, uma grande quantidade da coleção “Nosso Século”, da Abril Cultural. Uma obra que me encantava pelo conteúdo e que eu vendia muito, muito mesmo. Creio que dentre os demais livreiros, só eu havia, até aquele momento, descoberto as palavras-mágicas para vender aquela importante obra, pois nos três fornecedores que a possuíam em grandes estoques, eu só via as pilhas diminuindo quando eu as comprava.

“Cinco volumes que abrangem nossa história no período de 1900 a 1980, tudo através de reportagens de jornais e revistas. O Brasil demonstrado através de fotos, reportagens, citações, denúncias, e, além disso, você poderá ver toda essa velha-guarda de hoje em dia como era nos tempos de juventude. Olha a Hebe Camargo morena e pobre ainda; o Cauby novinho… Um verdadeiro arquivo da memória nacional!!. Agora, olha só o preço que consegui…” . Com pouco mais do que essa argumentação, (e dando, sutilmente, a entender que era uma obra que desagradava àquele governo ditatorial de então), mas sincera, e verídica -o que se constatava no ato- eu tirava pedidos sobre pedidos da inesquecível “Nosso Século”, aquela maravilha que vinha acompanhada de vinte e oito reproduções de jornais dos tempos da escravidão ( dos quais até o papel emque foram impresos que parecia mesmo ser daquela época), e um disco, um “bolachão” que trazia as vozes de Getúlio, Mussolini, Hitler, Juscelino e muitos outros líderes, além do primeiro samba gravado no Brasil, do Donga,”Ao Telefone” ou “O Telefone” , uma coisa assim. Aquela coleção me encantava e eu a vendi como água no deserto. Durante um bom tempo.

Acordei naquele dia disposto até a vender todo meu querido equipamento fotográfico, parado, sem uso, por falta de tempo, havia um bom tempo. Com dor no coração eu me desfaria de duas ou três máquinas fotográficas profissionais, tripés, flashes, ampliador, enfim, o que pudesse dar-me naquela manhã o capital necessário para aquela compra espetacular. Tive vontade de chorar ao colocar na maleta grande as máquinas que com tanto sacrifício fora comprando aos poucos. Fazer o quê…? Minha mulher (ex há muito tempo, felizmente..), via com satisfação a minha decisão. Sempre implicara com meu equipamento, que em nada a incomodava e com o qual tanto a fotografei quando ela era ainda bonita, simpática e atraente.

Se há um lugar chato pra se ir de carro é ao centro de São Paulo. Carregando aquele peso, dividido nos dois ombros, encarei as subidas de meu bairro, Aclimação, e tomei o metrô.

Com a maleta mais pesada no colo e as outras duas no chão, depois de conseguir um lugar para sentar-me, fui pensando nos clientes que teria que atender tão logo conseguisse o estoque da coleção. Minha nossa!! Que grana firme eu levantaria com aquele negócio…!! Poria todas as contas em ordem, no mínimo. E ainda sobraria o suficiente para uma boa viagem de descanso total.

Absorto, distraidão, custei a perceber a moça sentada à minha frente. Coisa difícil de acontecer. Ela era linda. Miúda, jeitosa, elegante no modo de sentar-se, bem vestida ao extremo, tinha um rostinho angelical e uma expressão do tipo de bem com a vida. Delícia de pessoinha. Um colírio para meus olhos.

Quando nossos olhares se encontraram não consegui evitar um sorriso discreto. Ela baixou os olhos, mas vi em seus lábios a sombra de um sorriso. Meu coração deu uma ligeira disparada.

De repente o vagão ficou quase vazio. Isso ainda acontecia naquele tempo. E passamos nós dois, eu e aquela coisinha linda, o trecho entre duas estações naquela troca de olhares deliciosa que antecede sempre alguma coisa boa a acontecer logo. Eu andava meio sem treino em paquera visual, mas ia de acordo com ela. Se me olhava tentando ficar séria, mais sério ficava eu. Se abrandava a expressão, eu fazia cara boa.

A certa altura ela levantou a carinha linda, olhou fixamente para mim, como que me desafiando a manter o olhar nela, e fiz o olhar de vesgo total. Ela riu e eu me levantei, sentei ao lado dela, e dei-lhe a mão.

- Muito prazer, moça linda. Muito prazer mesmo. Resolvi me apresentar para lhe agradecer.

- Agradecer o que? Posso saber?

- Você alegrou meu dia, meus olhos, minha vida. Eu acordei num baixo astral danado, achando que a vida não vale a pena ser vivida, e aí encontrei você sentada à minha frente. Tudo que era chato sumiu me meu cérebro…

- Você é fotógrafo?

- Como? Ah, sim…Sou.

- E qual é a sua especialidade? Faz casamentos, batizados, essas coisas?

- Graças a Deus, não. Não fotografo nada que eu seja contra, como casamentos, guerra, batizados. Minha especialidade são books de moças bonitas. Agora mesmo estou indo fotografar uma atriz da Globo. Sou exclusivo dela, por enquanto.

- Por enquanto porquê?

- Porquê ela ainda não é famosa. Logo que ficar famosa vai descobrir que não sou grande coisa e me dispensar. Aposto.

- Book é tão caro…

- Realmente não é barato, mas não se pode querer coisa boa gastando pouco.

- E quanto você cobra por um book bem feito?

- Questão apenas de combinar. E tem que se levar em conta algumas coisas, tais como quantidade de fotos, aluguel de estúdio profissional, tipo de fotos e de book que a pessoa vai querer. Tudo se ajeita no final. A gente coopera, desde que a pessoa coopere também.

- Cooperar como?

- Tendo naturalidade, gostando de ser fotografada, seguindo as instruções da gente, porquê algumas clientes querem ensinar o fotógrafo a fotografar, ou seja, para cliente boa, cooperativa, fotógrafo camarada.

- Faz tempo que estou ajuntando dinheiro pra fazer um book meu. Mas eu quero o melhor possível.

- E o tipo de foto que você quer?

- Todo tipo de fotos. Desde que não seja pornográfica.

- Você acha que tem naturalidade para posar nua?

- Total. Não tenho a menor vergonha do meu corpo.

- Nem teria motivo pra isso…Posso apostar.

- Quando é que poderíamos conversar de novo a respeito disso?

- Quanto é que você já tem para o book?

Quando ela disse a quantia eu me espantei. Alguém dissera a ela que um book poderia custar o preço de um bom carro usado, decerto.

- Uma bela quantia. Por ela você pode exigir um book de primeiríssima. Um super book.

- E você tem condições de fazer um book assim?

- Claro. É só uma questão de marcar a data.

- E quando é que eu pago?

- Você é quem sabe. Pode dar a metade antes e o restante depois da entrega do book.

- Se eu pagar tudo de uma vez, você me dá um desconto?

Tive que rir.

- Desconto sobre quanto, moça? Se nem combinamos o preço ainda…Vamos fazer o seguinte: hoje é quinta; estou mais do que ocupado. Amanhã eu terei que terminar um montão de trabalhos começados. Vamos marcar para sábado de manhã, mas você ficará comigo o dia todo. Agora vamos tomar um café e combinar tudo. Preço, tipo de fotos, nossos telefones, seu endereço, etc. e tal.

Eu não pedi nem insinuei nada, mas logo depois que combinamos o preço, ela abriu uma elegante bolsinha de couro, tirada de dentro de sua bolsa evidentemente caríssima, e fez um cheque da metade do valor combinado. Senti-me na obrigação de fazer um recibo, mas ela não o quis.

- Confio em você. Estarei te esperando no sábado. Deposite o cheque amanhã, por favor. Amanhã eu irei ao banco transferir o dinheiro da poupança para a conta-corrente. (Naquele tempo não se fazia isso apenas digitando números e senhas em um caixa eletrônico…).

Feliz da vida, assim que me despedi dela, tomei um táxi, fui até o fornecedor, dei o cheque em troca de uma boa parte da mercadoria que estava doido para comprar, e voltei à minha casa para pegar meu carro e enchê-lo de maravilhosas coleções novinhas e lacradinhas de “Nosso Século”, com os seus respectivos discos e jornais antigos.

Na sexta-feira, em poucas horas, eu já havia vendido todas as coleções, recebido os cheques de todos os clientes e voltado várias vezes ao fornecedor para arrematar o restante daquele último estoque existente. Que seria todo vendido nos dois primeiros dias da próxima semana, eu tinha absoluta certeza. Confiava no meu taco e no bom gosto do pessoal do Banco.

Na sexta à noite aluguei o estúdio de um amigo, depois de ter investido um bom dinheiro em pilhas, filmes e mais algumas coisinhas de que precisaria para tirar umas fotos maravilhosas da moça linda, que confiara tão prontamente em mim.

No sábado pela manhã encontramos-nos na porta da casa dela. Cheguei com o carro, vi-a na calçada, parei e ela entrou sorridente. Cumprimentou-me com um beijo no rosto e logo disparou a falar sobre as fotos que queria fazer.

- Meu corpo é lindo, você vai ver. Cuido dele demais. Demais mesmo. Sabe que não tenho uma única marca feia no corpo todinho? Minha pele é igual seda. É lisinha de dar gosto. Depois você vai passar a mão em mim e ver se estou exagerando…

A essa altura eu também já havia virado um tripé…Doido pra ver se ela era toda lisinha mesmo. Tinha certeza de que era.

Trabalhei muito naquelas fotos. A naturalidade dela, a espontaneidade, a beleza perfeita e o sorriso maravilhoso eram o sonho de qualquer fotógrafo. Tirei algumas centenas de fotos a cores e um montão de fotos em preto e branco, que eu revelaria em casa e guardaria para mim.

Para passar o fim-de-semana fora de casa eu havia inventado uma de minhas muitas viagens, que realmente aconteciam durante o ano, e resolvemos, eu e minha modelo, dormir ali mesmo. Faríamos à noite o que já fizéramos algumas vezes durante o decorrer do dia. E como fizemos…

Acordei na segunda-feira sozinho no estúdio. Pulei do sofá assustado e vi que ela sumira. Fiquei gelado na hora. Será que ela me roubou as máquinas?

Graças a Deus, não. Estava tudo ali, intacto. Haviam sumido apenas os filmes coloridos. Os preto-e-brancos eu havia amoitado em um canto da maleta que era difícil ver. Ela deve ter achado que pegara todos.

- Quer apostar que o cheque está sem fundos?

E estava mesmo. Era cheque roubado.

Saí do estúdio rindo. Aquela moça me salvara a pátria. Com o cheque roubado que ela me deu eu havia comprado boa parte da mercadoria, havia ganhado bastante dinheiro, comprado o restante da mercadoria que me interessava; faria ainda mais dinheiro e não teria a menor dificuldade em pagar o fornecedor que, é claro, me cobraria o valor do cheque dela. O melhor de tudo é que não me desfizera de nada do meu amado equipamento fotográfico.

Algum tempo depois, não sei quanto, vi algumas de minhas fotos, das fotos que eu tirara dela, estampadas em uma revista importante, que fizera uma enorme reportagem sobre a vida de atriz de novela que ela se tornara. Fotos minhas, mas com os créditos em nome de outro fotógrafo. Um conhecido meu de longa data, sem competência alguma para o ramo. Fui atrás dele e encontrei-o quase sem dificuldade alguma.

- Meu amigo, as fotos são minhas e você sabe disso. Diga à sua cliente que eu tenho comigo muitas fotos dela, pornográficas, em preto e branco. Que essas ela não conseguiu roubar. Se amanhã à tarde o dinheiro que ela me deve não estiver em minha conta, eu sei a quem entregar as fotos e estragar a bela carreira dela.

- Ela me jurou que não tirou fotos pornográficas…

- Mas fez sexo comigo muitas vezes. E eu sou muito pornográfico quando transo. Bem, dê o recado e evite complicações pra vocês dois. Aqui estão os dados de minha conta no banco. Vou esperar só até amanhã.

No dia seguinte o dinheiro estava em minha conta. Hoje em dia ela é famosa. Principalmente pela carinha de anjo ingênuo que tem. Tão de ingênua e tão de anjinho que nem faz papel de vilã.

O blefe deu certo. Blefe puro, já que tenho nojo de pornografia, simulacro nojento do amor.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 16/06/2007
Código do texto: T529357
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