"Talento Tipo Exportação" = Histórias de Amor Safado

No dia de Natal daquele ano de 1972, nós tivemos que trabalhar a centenas de quilômetros da capital, de nossas casas, para que nossa equipe de vendas da Abril Cultural fosse a campeã nacional. A Taça teria que ser nossa naquele ano.

Com os corações partidos, com saudades de nossas famílias em São Paulo, trabalhamos todos movidos a ambição. Ambição de prêmios, de mais comissões, de troféus e glórias para nosso território de vendas.

Às onze da noite recebemos um telefonema do Diretor Geral. Ele nos comunicava que éramos os novos campeões do Brasil e que nossa farra seria reembolsada pela chefia da equipe. A esbórnia estava autorizada e não nos custaria nada.

Corremos para um bom restaurante, comemos até não poder mais, bebemos até achar que toda bebida era pouca, e saímos pela noite à cata de mais diversão.

Atraídos pela música e pelas luzes em profusão, entramos em um clube qualquer e, fazendo a maior bagunça, ocupamos várias das mesas ainda vagas.

Percebendo que era uma turma de paulistanos, os garçons atendiam-nos prontamente e cheios de sorrisos. Gente de fora sempre gasta mais.

Brincadeiras, palhaçadas, risadarias, bagunça alegre e contagiante, a agitação foi crescendo. Até que um sujeito pegou o microfone e anunciou a grande atração da noite: uma bela cantora carioca.

A moça pegou o microfone, disse algumas gracinhas, provocou algumas risadas e logo pôs se a cantar. O que é que disse? Cantar? Aquilo era um festival de esganiço impressionante. Nem eu consigo cantar tão mal quanto aquela pobre coitada. E olhe que nem eu me agüento cantando.

Cantar mal ela cantava mesmo, mas que corpo! Que rosto! Que rebolado! A gente até se esquecia do que ela viera fazer ali e ficava olhando para aquele festival de sensualidade. As nádegas, os seios, as coxas, a covinha do sorriso e aquela carinha de anjo safado faziam com que a gente se esquecesse da falta absoluta de talento para o canto.

Eu seria capaz de não ouvi-la por horas a fio, apenas olhando-a. E babando.

- Ela me lembra peru, meu…

- Peru?

- É. Cantar não canta, mas pra comer deve ser uma delícia. Maior talento…

- E cada talentão…

A cada final de música nossa turma batia palmas que envaideceriam qualquer artista renomado, e ela achava que estava sendo idolatrada como cantora.

Já um tanto quanto encervejado, mais pra bêbado que pra sóbrio, esperei que ela olhasse para mim de cima do palco e lhe fiz sinal de que mandaria um bilhete. Ela entendeu e sorriu.

Tirei um papel do bolso, peguei a caneta do garçom e escrevi: “Você é demais para um lugar tão pequeno. O mundo está à sua espera e eu quero guiá-la ao sucesso.”

Terminada sua exibição ela correu, desinibidamente, para minha mesa e sentou-se colada a mim:

- Então você quer me guiar para o sucesso? E para onde acha que devo ir?

Quase que lhe respondi que, como cantora, poderia ir à….mas, como mulher, para minha cama. Saí pela tangente:

- Pense bem. Pense com calma sobre seu talento, sua capacidade, seus sonhos, sua força de vontade, sua garra para a luta, enfim, e depois me diga para onde deve ir. Onde será reconhecida, aplaudida, admirada como merece? Diga-me, mas apenas depois de refletir com toda calma.

Ela fez cara, pose e jeito de quem refletia profundamente. Mergulhou em seu próprio íntimo durante uns longos quinze segundos e depois me disse, com toda a modéstia:

- Você tem toda a razão. Neste nosso país de merda eu nunca chegarei a coisa alguma. Tenho que fazer como muita gente já fez: tenho que ir para o exterior. Lá fora, no estrangeiro, tenho certeza de que reconhecerão meu talento.

- Era exatamente o que eu ia dizer. Pra você não há meias medidas. É lá fora ou lá fora.

- Puxa, como está sendo bom conversar com você! É tão maravilhoso encontrar alguém que acredite na gente e que nos passe força, energia. Em que hotel você está?

- No Majestic.

- Que coincidência incrível!! Eu também estou lá.

Era coincidência demais até. Ainda mais que o Majestic era o único hotel da cidade…

- Não vai me dizer que você está no quarto 44? Esse é o meu quarto.

- No 43. Estamos vizinhos de porta. Bem em frente um do outro. Nossa, fico até arrepiada com a coincidência.

- Mais arrepiado estou eu. Olha que no meu quarto, dentro de minha mala, tem um monte de letras de músicas inéditas à espera de uma boa intérprete.

- Você me mostraria?

- Só se for agora. Já é tarde demais, e amanhã tenho que partir cedo pra São Paulo.

Ela recebeu seu dinheiro (imerecido como cantora) do gerente do clube, pegou a bolsa, deu-me o braço. e lá fomos nós para o Majestic.

Chegando ao meu quarto, abri a mala e fiquei "consternado" ao ver que “esquecera” todas as músicas em cima da escrivaninha de minha casa.

- Mas não faz, minha linda cantora. Sei todas elas de cor, mas não sei cantar como você. Então eu faço assim: vou recitando as letras e você vai musicando nessa sua cabecinha de artista.

À medida em que eu ia desenterrando da memória e recitando as poesias de Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais e outros, a gente ia se ajeitando na cama, sentando, deitando mais ou menos, deitando de vez, ajeitando travesseiro, tirando sapatos, meias, afrouxando aqui e ali nas roupas e ela, cada vez mais apaixonada pelas letras “inéditas” das música, ia amolecendo, enlanguescendo, admitindo, permitindo…

Lembro-me que a última que recitei era “Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra…”

- Linda essa. Demais mesmo, meu querido. Agora vamos deixar o trabalho pra lá e pensar no prazer. Já vi que você é tão artista quanto eu: só de pensar em música já fica todo excitado.

Ainda bem que não existia karaokê naquela época, se não ela estraçalharia. Estraçalharia os vidros do aparelhos, das portas, as garrafas, os copos e sei lá mais o quê. Como cantora…eca! Como mulher…mamma mia!! Entrava no ritmo e não desafinava.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 16/06/2007
Código do texto: T529390
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