841-TEMPO DE MORRER DE FOME - Histórias/Canibalismo

De pé sob uma pequena elevação que nem se podia dizer que fosse uma colina, a figura impassível do Chefe Wahunsenacawah (pronúncia: uárun-senacauá), olhava para o amontoado de casas de toras de árvores, fustigada pelo vento forte que vinha do mar, carregado de umidade. A fumaça que costumava sair das aberturas em forma de troncos ocos nas coberturas das toscas habitações, já há tempos não se via, indício de que os moradores, os englixes, não tinham mais lenha para fazer fogo a fim de se aquecerem ou cozinhar seus alimentos.

O chefe pele-vermelha via com desprezo a incapacidade dos homens-brancos para se manterem. Estava ali mesmo quando eles chegaram, em grandes barcas, desembarcaram e começaram a construir moradias. Enquanto os dois grandes barcos permaneceram imóveis, havia muita gente trabalhando. Chefes gritavam ordens, e rapidamente as árvores foram cortadas e as casa montadas com as toras. Limparam diversas áreas de terra, que cavaram e semearam. Chegaram na primavera, ocasião propícia para começarem a tratar com a terra. A sua tribo já havia plantado o milho que crescia sob dias ensolarados e cada vez mais quentes

Os irmãos da tribo Paspahegh acolheram os brancos com promessas de paz e convivência sem brigas e ajudaram no corte de árvores. Receberam em troca muitos enfeites para usarem nas roupas, materiais que despertavam a curiosidade e os faziam rir, e uma forte bebida que alucinava os sentidos.

Depois que os grandes barcos foram embora, os brancos que ficaram tornaram-se indolentes. Parece que, construídas as casas, não tinham mais nada que fazer. A terra plantada voltou a ser coberta pelas plantas nativas. Faziam expedições de caça, com as armas que expeliam bolotas de metal, mas desorganizados e desconhecedores dos lugares onde a caça abundava, não obtinham bons resultados.

Foi então que propuseram trocar seus pertences por milho. A safra tinha sido boa para a tribo dos Paspaheg, trocas foram boas para todos.

Os brancos eram arrogantes e bebiam da bebida forte dos brancos. Uma água colorida e venenosa. Brigavam entre eles quase todos os dias. Seguiu-se uma briga grande, uma guerra entre os brancos e os Paspaheg. Não havia como vencer os brancos com suas armas que cuspiam fogo e bolotas de metal. A tribo dos Paspaheg foi totalmente aniquilada pelos brancos.

Numa de suas caçadas, um dos brancos matou o filho de Lebre Astuta, jovem que não havia se tornado ainda guerreiro. Houve revolta. Foi a muito custo que consegui convencer os meus guerreiros que havia sido uma morte involuntária, que os brancos não queriam matar o nosso jovem.

Depois disso, não fizemos mais trocas. E eles foram intimidados a não mais caçar em nossa região.

Então, os brancos começaram a passar fome. Não conseguiam cultivar a terra, pois haviam escolhido um terreno muito ruim para se estabelecerem. Apenas um tipo de planta vicejava. De folhas largas e oleosas. Não serviam para comer. Era para fazer o tabaco, que os brancos gostavam muito.

Então chegou o inverno. Muito mais rigoroso do que os anteriores. Para os brancos, foi pior: não caçavam e os alimentos também acabaram. Parece que ficaram doentes, pois muito morriam ao ar livre: atacados subitamente por algum Mali, deitados na neve, se acabavam.

Foi quando meus guerreiros, que vigiavam os brancos dia e noite, se deram conta de que alguma coisa muito estranha estava acontecendo entre eles.

Eu mesmo passei a chefiar a vigilância, para ver o que estava acontecendo.

Então eu vi! Com os olhos do falcão, vi.

Numa tarde clara, o sol frio iluminando a neve, uma mocinha saiu trôpega de uma cabana e caiu de bruços a poucos metros, sobre a neve. Permaneceu imóvel por algum tempo. Em seguida, da mesma cabana, saiu outro homem, que caminhou até a moça deitada (já devia estar morta, devido ao frio) e usando uma faca, cortou as roupas, expondo o corpo muito branco, a ponto de se confundir com a neve, Em seguida, colocando o corpo de bruços, cortou um grande pedaço de seu traze iro. A custo levantou-se e com o pedaço de carne na mão, ainda pingando sangue sobre a neve, voltou para sua casa.

Os brancos estavam COMENDO SEUS MORTOS!

Ante tamanha mostra de selvageria, o falei com os guerreiros que estavam comigo:

— Homem branco está comendo homem branco. Estão morrendo de fome. Devemos ajudá-los.

— Mas como vamos ajudar homens brancos, se nosso estoque de milho está no fim? Nossa reserva de carne também está acabando. — Responderam os seus conselheiros.

— Vamos descer até a vila dos brancos e ver o que podemos fazer.

E iniciaram a descida da colina, pela trilha coberta de neve, em direção ao vilarejo dos brancos.

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O povoado de Jamestown foi o primeiro assentamento britânico em caráter oficial e permanente na América do Norte. Fundado em maio de 1607, com pouco mais de 100 colonos, que sobreviveram a duras penas durante os dois primeiros anos, abastecidos por navios da coroa britânica, com suprimentos de alimento e de tudo o que precisavam. Os colonos não conseguiam obter do solo ou da mata, cereais, plantas ou carne para sua própria alimentação. E no inverno de 1609/1610, os colonos atacados pelas doenças e enfraquecidos pela fome. Foram quase exterminados. Dos 104 colonos na ocasião, 65 morreram. E então aconteceu o que o chefe viu de seu posto no alto de uma colina.

Desceram com dificuldade. As casas estavam todas fechadas, última tentativa de os colonos sobreviverem ao frio. Chegaram até a metade da única rua da vila quando um branco apareceu à porta de sua casa.

Ainda que fraco e segurando com força no batente da porta, o branco gritou para os índios:

— Vão embora! Não fiquem aí, parados, nem entrem em nenhuma casa.

O chefe deu dois passos na direção da cabana onde o homem mal se agüentava de pé.

— Pare aí, índio idiota! Estamos atacados de peste. Se você não fugirem daqui, serão também atacados e morrerão todos.

Wahunsenacawah estacou. Não entendeu tudo o que o branco dizia, mas a palavras peste e morte ecoaram claramente em seus ouvidos. Virou-se para os companheiros, ordenando:

— Vamos embora. Eles estão condenados, nada podemos fazer.

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Aqueles terríveis dias e semanas passaram lentamente, até que em maio de 1610, com a chegada de navios da Inglaterra, chegou ao fim aquele tempo que ficou conhecido na colônia como Tempo de Morrer de fome.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 3 de maio de 2014

CONTO # 841 DA SÉRIE 1.OOO HISTORIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/07/2015
Reeditado em 15/07/2015
Código do texto: T5311979
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