O último dia de aula

Aqueles sorrisos débeis se desvaneceram. Sorrisos infantis, sem motivo, largos e inconsequentes. No momento que ele se levantou, ninguém o notou. Afinal, ninguém o notara nunca, pois sua presença era como um cranco nos testículos da sociedade.

Nunca lhe davam o direito a voz, por isso trancava todas as suas palavras a sete chaves, como passarinhos presos nas hastes da gaiola que era o seu coração. Nunca lhe davam direito a nada. As vozes murmurantes de seus algozes ressoavam ´´Ele é burro como uma porta``, ´´deve ser retardado,só pode``,´´lixo``. Ele ouvia o ressoar das ofensas em silêncio, e engolia todos os termos pejorativos e ofensivos que lhe davam.

Sentia-se o pior dos seres, nem mesmo humano.Ao encarar sua face no espelho, o que via era um rosto marcado por espinhas, nos quais um par de olhos muito claros estavam incrustados, ironicamente lhe pareciam a única coisa bonita, eram de um tom azul como uma manhã ensolarada de domingo, assim como sua mãe lhe costumava dizer. Mas ao notar, via que eles estavam em desarmonia com a sua cara muito redonda que lhe dava um aspecto quase doentio.

Vestia-se como um caipira saído de um filme trash dos anos 70. A camisa branca da escola já estava quase transparente de tão gasta, e as manchas de gordura e suor já não saiam mais. Nos joelhos remendos feitos com tecidos de outra cor, costurados a mão pela mãe. Os óculos remendados com uma fita adesiva e os cabelos cortados com uma tesoura caseira completavam seu visual.

Era desajeitado, feito um João Bobo, ao andar parecia desconfortável em sua própria pele. As vezes, quando o ofendiam ele sorria, não era alegria e sim tristeza reprimida. Seu pai dizia ´´ Homem não chora, largue de viadagem, não quero filho viado!``, e as surras vieram para faze-lo mais homem.

E ele sentia o medo. E o medo crescia em seu peito, como uma erva daninha, dominando-o, e quando sua mente infantil despertou para a maturidade sofrida e forçada, ele compreendeu do que era feito o mundo, maldade.

E assim compreendeu, que ser diferente era um fardo.

Era uma manhã cinza e chuvosa quando levantou-se de sua carteira, caminhando por entre os outros, sentiu os olhares em sua nuca, as risadas, os gracejos, pontapés e tentativa de derrubá-lo. Ninguém notou o pacote em suas mãos. A professora notou o seu olhar disperso, tentou compreender aqueles olhos sem vida, sem vontade, pediu em vão que retorna-se ao seu lugar. Mas naquele dia ele não a ouviria, pois seus lábios pálidos e cansados apenas se moviam sem sons.

Colocou-se a frente de todos, peito estufado, expressão firme e decidida. Observou a face da menina bonita na primeira carteira, mastigando seu chiclete lascivamente, ela sorria superficialmente, e pensou em como era bela e ao mesmo tão podre. Observou a expressão desdenhosa de seu algoz, o menino bonito da turma, o garoto dos seus pesadelos, seu perseguidor a sorrir, a espera de alguma atitude imbecil de sua parte.

Sua mão foi até o pacote marrom e trouxe a tona, algo que deixou a todos estarrecidos. Os sorrisos se dissolveram nos rostos estáticos de horror. No momento em que puxou o gatilho o tempo parecia ter mergulhado em um líquido aquoso, o som dos gritos e instantes de terror pareciam longínquos. Uma explosão de cores e o cheiro ocre inundaram o ar, sangue e massa encefálica pintaram o quadro negro da sala, criando um buquê de rosas mórbidas.

O menino tombou sobre os joelhos, com os olhos muito abertos e todos viram quando seus olhos claros se transformaram em dois pontos negros. Era a morte vista pela primeira vez.

A última imagem registrada antes do instante da morte, fora uma fotografia opaca a se dissolver em desespero, dor e consternação. Sentiu muitos braços ao seu redor, o toque quente de alguém, a voz da professora talvez, tão distante, tão dolorosa, parecia estar chorando, quem sabe. Muitas vozes, murmúrios de uma vida que o negou.

Ele sabia que não sofreria mais, pois aquele seria seu último dia de aula.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 18/07/2015
Reeditado em 20/02/2017
Código do texto: T5315776
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