A CASA

Os estudantes , residentes naquele casarão colonial da zona sul, desciam as escadas para uma assembleia. Era noite. Do mar soprava um vento que agradava a Salatiel. Nervoso, conversava com Jadir sobre a pauta da reunião. Salatiel olhava o movimento de veículos nas pistas lá embaixo. Mais tenso, Jadir fumava um cigarro atrás do outro.

- Eu não vou lá, falou Jadir.

- Assim não dá. Lutar sozinho contra esses reacionários é impossível, reclamou Salatiel.

- É, mas neguinho está a fim de me pegar.

- E eu que já fui preso pela ditadura e continuo sendo vigiado, aqui dentro e fora?

- Então toma cuidado, meu camarada, disse Jadir.

Salatiel saíu rumo à assembleia. O presidente da Casa do Estudante Universitário tentava acalmar os ânimos. O clima da reunião estava agitado, porque um grupo de estudantes queria expulsar o Mosquito, que fazia pós-graduação em Física, sob a acusação de fumar maconha em seu quarto, além de levar mulheres para lá.

Salatiel estava enraivecido. Achava aquilo um absurdo. Esperava que alguém assumisse a defesa do Mosquito. No entanto, nem o próprio Mosquito se defendia, adotando uma postura passiva, como se não fosse ele o alvo da tentativa de expulsão. Ele chegava até a rir como se estivesse assistindo a um espetáculo hilariante.

Do lado dos adversários havia dois ou três que exigiam a expulsão de Mosquito da república estudantil, de acordo com o estatuto da entidade. Quando Salatiel percebeu que eles iam virar a mesa, resolveu enfrenta-los:

- Vocês são uns reacionários, safados e falsos moralistas.

Houve um silêncio. Eles reagiram, hostilizando Salatiel. Com a rapidez de um relâmpago, Salatiel cerrou o punho esquerdo e desafiou-os. O presidente da Casa, Eurídice, interveio, serenando os dois lados. Mosquito permanecia tranquilo. Foi encaminhada a votação, sendo aprovada a expulsão de Mosquito.

No quarto, Salatiel comentava com Malheiros a reunião. Salatiel disse que passara a noite sem dormir de tanto ódio dos direitistas.

-Olha, cara, isso aqui tá ficando cada vez pior. Uma vez já chamaram a polícia. Daqui a pouco, eles vão me expulsar, também, porque eu não sou residente, advertiu Malheiros.

-Até eu posso também ser expulso, disse Salatiel.

-Eu falei que essa maconha do Mosquito ia prejudicá-lo. Se o cara não tiver militância e teoria marxista cai no pântano do existencialismo. Sempre disse que o melhor entre esses caras é você, do ponto de vista ideológico. Os outros são uma merda.

- O que mais me chateia é que somente eu brigo contra esses reaças. Se tivéssemos mais dois ou três atuantes, eles não teriam maioria nas assembleias.

- É verdade, concordou Malheiros, baforando seu cachimbo de marfim.

Malheiros fora militante de esquerda. Preso e torturado, ficou caolho de tanto levar porrada nos cárceres da ditadura. Estudara engenharia. Lia e falava fluentemente francês. Era um pintor extraordinário e tinha uma sólida cultura marxista. Vivia como morador pirata na Casa.

Bateram na porta. Era o Lázaro. Sentou-se na cama de Salatiel e chorou. Ele bebia há vários dias sem comer e sem dormir. Os olhos dele estavam vermelhos. Salatiel sensibilizou-se e Malheiros, com sua postura rígida, balbuciou recriminações contra o alcoolismo de Lázaro.

Na cozinha encontraram o Teó fazendo um almoço improvisado. Alegre como sempre, Teó, um estudante mato-grossense de cor morena e de cabelos crespos, mexia a panela cheia de macarrão. Na mesa velha havia massa de tomate, óleo, ovos e macarrão.

- E aí o regabofe está pronto? Brincou Salatiel.

- Está quase no ponto, respondeu Teó, satisfeito.

Malheiros ironizou, pegando no ombro de Teó:

- Esse, aqui, vai ser nosso cozinheiro no governo revolucionário.

Salatiel soltou uma gargalhada.

- Essa é risada de puta, afirmou Malheiros, sorrindo também.

Teó riu e tomou um gole de vinho tinto.

- Eles estão vibrando com a expulsão do Mosquito.

- Não poderia ser diferente. São todos eles contra o Salatiel. Nenhum de vocês se levantou contra essa corja direitista, falou Malheiros, irritado e batendo na mesa.

Calaram-se. Passos anunciavam a chegada de alguém. Poderia ser do lado deles ou dos contra. Era um hippie albergado, cheio de tatuagem, com cara de sono e de fome. Disse algumas palavras desconexas e sumiu.

-Está aí a alucinação do tóxico, advertiu Malheiros. É assim que o capitalismo quer a juventude, dopada com drogas até enlouquecer ou morrer. Nesse aspecto, os reacionários estão certos, quando expulsaram o Mosquito. Só que eles usaram isso como pretexto para hostilizar vocês, adversários deles aqui.

Salatiel gesticulou a cabeça, concordando. Havia um amplo salão, onde os estudantes assistiam à televisão. Lá, trocavam ideias e se divertiam com os programas. Os mais assíduos na TV eram os residentes rotulados de direita e moderados. À noite, quando ficavam ao redor da televisão, Salatiel, Teó, Rubens e Raul saíam para o bar mais próximo. Tomavam cerveja e falavam sobre os problemas da Casa. Num desses instantes, Salatie l confidenciou:

-Acho que estou sendo seguido pela polícia.,

-É ? Indagou Raul, com seus cabelos grandes e castanhos, óculos redondos e gestos calmos.

- Ih,Salatiel, eu nem te falo, bateu Teó na testa.

Lá fora, via-se edifícios imensos, parecendo cavernas insensíveis aos dramas do povo, aqui no solo.

- Sim, fala Teó, pediu Salatiel, bebendo um copo de cerveja.

- Ontem, à noite, quando eu vinha da faculdade, três caras me abordaram e me perguntaram o que era que tu estavas fazendo na Casa. Se tu estavas influenciando a gente.

- Ah, já sei. Deve ser por causa da reunião de expulsão do Mosquito. Eu fui contra e me exaltei.

- Pode ser, ponderou Raul.

- De duas uma, ou tem gente infiltrada na casa ou um deles me denunciou à policia.

Teó levantou-se e pediu a conta. Salatiel solicitou a expulsadeira para encerrar.

-Tem ainda um detalhe, Salatiel, aquele jornalzinho que escreveste criticando a direita da Casa e o regime militar deve ter despertado a repressão, imaginou Raul.

- É possível, até acho que dentro da Casas existe agente infiltrado para vigiar a esquerda. E, no albergue, outro dia, o Teixeirinha encontrou uma caixa de fósforo com a logomarca do Estado Maior das Forças Armadas.

Teó que se mostra sempre alegre, ficou sério. Raul continuava introspectivo como sempre. Salatiel estava nervoso.

Malheiro andava imponente pelas amplas dependências do sobradão. Do pátio, olhava o segundo pavimento do prédio.Admirava aquela arquitetura colonial. Intimamente, lamentava que uma casa tão bonita estivesse acabando aos poucos, com as instalações se deteriorando. Tirou o cachimbo e um pacote de fumo.

Salatiel apareceu à sua frente com o semblante fechado. A manhã estava amena, mas o clima na Casa era apreensão. Ao ler no mural um recorte de jornal, noticiando a morte de um jornalista nas prisões da ditadura, Salatiel ficou perturbado.

- Tu já viste a notícia no mural? Perguntou Salatiel.

- Sim. Mataram o cara no Doi-Codi e deram a versão de que se enforcara. Estamos nas trevas do fascismo. Primeiro liquidaram a guerrilha e, agora, estão matando os comunas que defendem a via pacífica para a revolução.

- É isso mesmo.

Vestido de branco e portando uma valise preta, Anísio, estudante de medicina, passou por eles sorrindo como se tudo no país estivesse às mil maravilhas. Malheiros gracejou, falando que acabara de passar um verdadeiro patriota.

- Vou acolá, despediu-se Malheiros, saíndo para mais uma de suas atividades misteriosas.

Triste, Salatiel subiu devagar a escada de mármore em direção ao quarto. Pegou um livro de autor marxista, de circulação proibida. Tremeu, pela primeira vez, ao folhear o livro. Fechou-o, autocensurando-se, com medo de ser flagrado, lendo-o. Talvez, até fosse preso e, quem sabe, morto, porque fora preso político há alguns anos atrás. Saltou da cama inquieto e saíu, dirigindo-se ao quarto de Teó.

Bateu na porta. Teó abriu-a, com um sorriso. Jadir fumava, de cueca, com os dedos amarelos de nicotina. Salatiel sentou-se na cama de Teó mais aliviado.

- A situação tá preta, disse Jadir. Estão matando neguim por simples suspeita. Eu vou sair daqui o mais rápido possível.

- Eu vou ficando aqui. Não tenho para onde ir, falou Salatiel, respirando com melancolia.

Teó convidou Salatiel para irem comprar algumas coisas no supermercado. Jadir preferiu ficar enclausurado.

Salatiel e Teó pararam numa praça, esperando dar o sinal vermelho do semáforo. Atravessaram rapidamente a pista e seguiram para o supermercado.

Lá, Teó escolhia produtos como barbeador, sabonete, shampoo, entre outros. Salatiel olhava a prateleira de bebidas.De repente, um homem com físico de atleta topou nele, sem pedir desculpas. Salatiel olhou-o com raiva. O homem parou e encarou-o, desafiando-o. Salatiel quis saber dele a causa da agressão, porém , emudeceu, ao raciocinar que poderia ser provocação de agentes policiais. Os outros clientes faziam suas compras, sem saber o que estava acontecendo com Salatiel.

Teó dirigiu-se ao caixa e Salatiel segui-o, levando uma garrafa de vinho. Na saída, o mesmo homem postava-se na esquina, mirando com hostilidade para Salatiel.

Na cozinha, após relaxar um pouco, Salatiel pediu um copo de vinho, mesmo quente, para acalmar os nervos. E começou a contar o episódio do supermercado. Teó indagou surpreso:

- Foi mesmo?

- Era agente da repressão. Não tenho nenhuma dúvida.

Malheiros sorriu com sua voz grossa, dizendo:

-Camaradas, a revolução demora mais virá.

Riram. Salatiel colocou Malheiros a par do que acontecera no supermercado.

-Pode ser paranoia, reagiu Malheiros.

-Não é, irritou-se Salatiel.

-Então se for perseguição policial, está na hora do camarada mostrar que tem estrutura ideológica e passar por cima disso tudo. Acontece que a tua militância foi muito periférica e aí estás agora em pânico.

Muitos jovens lotavam o saguão do cinema. O filme, considerando a censura, imposta pela ditadura, era um verdadeiro achado cinematográfico. Salatiel e Malheiros liam resenhas de jornais sobre o filme. À frente de Salatiel surgiu o mesmo homem do supermercado. Salatiel empalideceu, sentindo um calafrio e chamou Malheiros para um local distante.

-Estás vendo aquele sujeito de bigode e camisa listrada, alto e forte?

-Sim, respondeu Malheiros.

- É o mesmo do supermercado. Ele ficou em minha frente, ali, olhando-me de maneira provocadora.

- Fica tranquilo. Faz de conta que não está vendo nada.

Entraram na sala de projeção do cinema. Sentaram-se numa fileira de poltronas, no meio da sala. Salatiel aquietou-se, mas sem se concentrar na película. Malheiros mergulhou no filme do começo ao fim.

Na saída, o estranho, ao lado de dois outros, dirigiram-se rumo a Salatiel, quando ele e Malheiro iam à parada de ônibus. Um deles bateu, de propósito, com a mão nas costelas de Salatiel. Malheiros não viu. Salatiel fingiu não ter ocorrido nada, deixando para contar a ocorrência a Malheiros quando chegassem em casa.

-Eles bateram em mim de novo, contou Salatiel, entre cansado e deprimido.

-De novo? Malheiros espalhava fumaça do cachimbo com suas baforadas elegantes.

- Eles fazem a coisa com tanta sutileza que a pessoa que está com a gente não percebe. São capazes até de nos matar em plena via pública sem que ninguém veja.

Salatiel disse que seu braço direito estava duro de tensão. Talvez, fosse melhor voltar para o Nordeste. Malheiros achou a ideia boa e até planejou tirar sua poupança no banco, comprar um barco e curtir as belezas das praias nordestinas.

No dia da viagem, ao acordar, Salatiel encontrou um bilhete de Malheiros, desejando-lhe êxito em sua terra. Até o momento da partida, Salatiel reviveu bastante emocionado os instantes que vivera sob aquele teto tão anônimo e coletivo, porém, acolhedor e hospitaleiro.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 24/07/2015
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