Boi Saracura

Ainda não sabia se estava acordado ou sonhando. Olhou para o lado e viu a irmã deitada na outra cama. O cobertor era o mesmo. O cheiro do quarto também. Pulou a janela e correu para o quintal. Precisava ver se tudo ainda estava lá, do mesmo jeito quando deixou aquele lugar que, para ele, só existia quando o ônibus cruzava o trevo da cidade. Sentiu o cheiro do manacá e passou o dedo pelo cimento onde havia escrito seu nome nas férias de dezembro. Agora tinha certeza, não era um sonho, estava mesmo na casa da avó.

Depois dos minutos de euforia, a mais gostosa de todas as dúvidas, o quê fazer primeiro?

Como todos ainda dormiam, abriu com cuidado o portão e começou a caminhar pelo passeio. A névoa da manhã de julho cobria boa parte da rua.

Será que seu amigo Pedro já havia levantado? Se ainda não tivesse, bateria na janela do quarto. Sabia que ficaria feliz em vê-lo, mesmo assim tão cedo. Próximo à casa viu alguma coisa no passeio, mas não conseguiu identificar o que era. Caminhou devagar e sentiu todo o corpo tremer quando o reconheceu. Sentado tranquilamente, o gigante que conhecia apenas nas histórias da avó, tomava seu café. Era ele, tinha certeza. Quem mais conseguiria comer tudo aquilo sozinho, ainda mais àquela hora?. Um saco enorme de pães, uma travessa com carne e um balde cheiinho de leite, assim como contavam. João Serrador tinha a força de dez homens e era capaz de capinar uma roça inteira mais rápido que um trator. Mas, de tudo que falavam sobre ele, o pior, não gostava nem um pouquinho de crianças.

Deus do céu! Encontraria o amigo depois, já que o medo o impedia de chegar mais perto.

Deu meia volta em direção à rodoviária. Da esquina já o avistou. Ico estava sentado nas escadas. Braços cruzados, chapéu abaixado, cochilava. Talvez estivesse sonhando com os caminhos e boiadas que conduziu desde menino e que não existiam mais. Aquele ex-boiadeiro despertava nele toda admiração do mundo.

Quis assustá-lo, mas não teve coragem ; em vez disso, começou a cantar baixinho uma moda, a história do Ferreirinha, preferida do amigo. Ico reconheceu sua voz e o olhou surpreso.

- Uai, menino, cê chegou que dia?

- Cheguei ontem de noite.

- Então já tenho um serviço procê, o Ismael vai passar daqui a pouco com o caminhãozinho. O João do Miceno vendeu aquele boi, o Saracura. Tá lembrado? Nóis vamos lá buscá e ocê vai junto. Vai lá e avisa sua Vó.

Não demorou a lembrar do Saracura. Engoliu em seco quando a imagem do boi apareceu na cabeça. Saracura era um boi rajado, bonito que só ele e brabo até não mais poder. Era filho da vaca meia noite, famosa na cidade por ter atacado, por volta da meia noite, duas moças que voltavam de uma quermesse no Santos Reis.

Saiu numa carreira só e, receoso que a Avó não permitisse, parou na padaria estrela para passar o tempo e voltar com a resposta, ou melhor, a mentira. Pediu café e uma “marta rocha”.

- Olha aí, Ismael, quem vai junto.

- Êh, muleque, cê vai enfrentar o saracura com nóis? Tem que pegá pro chifre e morder o rabo, hein? (Ismael gostava de brincar com ele, principalmente se fosse para amedrontá-lo.)

E lá se foram.

Um tucano cruzou na frente deles. A estradinha era danada de ruim. Um poeirão só.

Pulou do caminhão e correu para abrir a cerca. Haviam chegado. Entravam no reino do boi, a Fazenda da Lage.

Ico desceu quando chegaram ao curral e pegou sua vara de ferrão na carroceria do caminhãozinho. Ismael pegou a dele também.

Procurou uma para ele, mas não encontrou. Começou a acompanhá-los, mas o velho boiadeiro o deteve.

- Você fica aqui, menino. Trepa lá na grade da carroceria. Quando o Saracura entrar no curral, fecha a porteira rápido.

Estavam demorando demais. Cansado de tanto esperar, decidiu ir atrás.

Ah, pra quê? Quando chegou no alto do morro para tentar avistá-los, ficou gelado de tanto medo, Saracura vinha a toda em sua direção.

Desceu o morro correndo e pela primeira vez sentiu o que já tinha ouvido tanta gente contar quando a morte parece que está tão pertinho, ao mesmo tempo que sentia as pernas queimarem e o peito arder de tanto correr, conseguia pensar na mentira que havia contado, na avó, em sua irmã, no amigo que talvez não mais veria.

Minha Nossa Senhora, não me deixa morrer agora não! Se eu morrer minha mãe me mata!

- Deita no chão, menino, deita no chão! (Ouvia os homens gritando.)

O boiadeiro uma vez lhe contou que o único jeito de se salvar quando um boi corre atrás de você é deitar no chão. “Ele pensa que você está morto”, disse ele.

Apavorado, percebeu que não ia conseguir chegar até o caminhão. Não havia outra maneira. Pensou em deitar, não conseguiu. Uma pedra o ajudou. Tropeçou e bateu a cabeça com tanta força que desmaiou. Sonhou que voava sobre a fazenda. Um filete de água brotava de uma árvore. Desceu até ela e viu, sentada em um banquinho com um pequeno cachimbo nas mãos, uma preta velha, com os olhos fechados, soltava grossas nuvens de fumaça. Pediu que se aproximasse. Com alguns galhinhos de arruda na mão, começou a benzê-lo e, quando estes roçavam o seu rosto, sentia algo quente e molhado.

Abriu os olhos devagar. O boi o lambia.

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 24/07/2015
Reeditado em 29/07/2015
Código do texto: T5322443
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