A Desmorte do Amor

 
Despertou lânguidamente, com o diário ao lado da cama. A caneta marcava a página que fora escrita na noite anterior. Preservava desde a adolescência o hábito de escrever diário. Era o seu amigo. Seu confessor. Compreendia-a, guardava os seus mais ternos segredos de amor, os tesouros do seu coração. A capa, amarela como as penas do canário, despertava nela uma sensação de loucura. Sempre associara a cor amarela à loucura. Para ela as cores eram como estados de alma. Fazia-a sentir-se bem o preto do seu terno bem-cortado, perfeito para o seu talhe esbelto. As sandálias salto 12, também pretas, compunham a figura alta de andar suave que atraía os olhares, pasta preta na mão, óculos de aros grossos que se adequavam ao ar compenetrado do seu rosto.
Caminhava pelas ruas como se estivesse a passear e não indo ao trabalho. Parava para ver uma gota de orvalho tremulando ao sol, as lentes dos seus óculos refletiam o voo de um pássaro. Sempre sorria ao ver crianças.
Ela sorria. Lembrava-se de uma borboleta que um certo dia voejara em torno dela. Tinha sido um dia perfeito. Vestido florido, cabelos trançados, ela ria e ria enquanto a enorme borboleta fazia-a dar voltas como uma bailarina em plena avenida.
Era feliz, amava e era amada. Pela primeira vez na vida alguém nutria por ela um sentimento sincero. Apresentara-o à família, aos amigos, ao diário. Era o seu namorado.

Trabalhavam juntos. Do lugar onde ficava podia vê-lo em sua mesa, sempre muito atarefado com as coisas da empresa. Assim ele a cortejou, no começo tímido, depois um pouco mais ousado ao saber-se correspondido.

Gostava dela. Sabia-se amado. Porém dentro do seu coração ele não queria mais esconder a sua verdade mais profunda. Amava a outra, a que sempre amara. E do amor, assim como da morte, ninguém escapa. Tentara fugir desse sentimento. Seguira o ditado popular, "a dor de um amor cura-se com um novo amor". Em vão.
Falou com ela, foi sincero, decidiram tornar-se amigos. Dissera-lhe, do fundo do coração: "eu serei um grande amigo para você". Eles deram-se as mãos e ela sorriu docemente.
Na hora do almoço ele foi, como todos os dias, assumir o setor do colega para que este fosse almoçar. Ela não saíra para o almoço. Andava sem apetite e ele sabia o porquê. Incomodava-o saber que ela sofria pelo término do romance. Gostava dela, de coração.
Sentado na poltrona de encosto alto ele sentiu apenas um perfume de flor de cerejeira...

                                                 ELE

... Quando olhou para a porta não viu ninguém mas sabia, era o perfume dela. Entristeceu-se.
No dia seguinte soube que ela partira. Era o fim daquele amor.
Entendeu-se com a mulher, voltou para casa e foi muito feliz com sua família. Os meninos cresceram e tornaram-se homens de bem, honestos e trabalhadores como ele.
Iam sempre ao interior, a esposa e ele porque sua alma era do campo, dos roçados e açudes.
Ninguém no mundo viveu mais feliz que ele, ao lado da família que crescia quando um dos seus filhos dava-lhe netinhos. Foi um homem bom e os deuses abençoaram-no com uma boa morte.


                                                   ELA

...Fechou a porta com a suavidade com que abrira. Queria tão somente vê-lo mais uma vez, talvez pela última vez.
Pedira demissão, não aguentava sequer pensar na ideia de ver o seu amor todos os dias, tão perto e tão distante, construindo a vida com a mulher e os filhos do momento em que o destino abriu um parêntese para que ela entrasse em sua história e fechasse de repente, em seguida.

Nunca mais se viram. Ela chorou, se desesperou, pensou coisas ruins e chorou mais. Foi tão grande o seu sofrimento que a Musa apiedou-se e tomou-a a seus cuidados, rasgou-lhe o veio da poesia e os versos escorreram misturados com as lágrimas. A dor foi amainando, a ferida silenciado até tornar-se uma profunda cicatriz.
Firmou-se na literatura, ganhou dinheiro, reconhecimento. Foi à Europa, formou-se, publicou muitos livros. Em sessão solene tomou posse da cadeira de número cinco da Academia Brasileira de Letras mas nunca deixou o sertão, era lá que o seu coração estava, suas raízes, seu exemplo de força e resistência. Comprou uma pequena propriedade e foi morar sozinha, com seus discos, livros e cachorros ferozes que protegiam-na. Levantava-se cedo para dar milho às galinhas, ordenhar a vaca e acarinhar o bezerrinho. E escrevia muito, sempre.
Nunca o esqueceu nem deixou de amá-lo, apenas aceitou o seu destino porém, em noites de São João, sentia uma saudade mansa e profunda como um lago inundar-lhe a alma...

A filha de Calíope optara pela solidão. Recolhera-se em si mesma como uma flor abotoa-se ao primeiro sopro da noite. Viveu ainda uns anos e exalou seu último suspiro deitada em sua cama, em uma noite de São João, olhando pela janela um balão que ia sumindo no céu...
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 27/07/2015
Reeditado em 27/07/2015
Código do texto: T5325891
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