Sonhei com você (junho de 2015)

Sonhei com você. No meu sonho você passava por mim e não me via. Eu caminhava de manhã bem cedo na feira e você vinha caminhando rente a mim, passava por mim e não me via. Eu parava e me virava em sua direção. Queria dizer o seu nome, mas nenhum som saía de minha boca e você ia embora.

No meu sonho a gente quase se encontrava numa manhã especial. Era uma manhã ensolarada perfumada entre as barraquinhas de frutas da feira. Tudo parecia ter o seu cheiro, que para mim é o mesmo cheiro do abacaxi maduro. Havia muita gente e nós caminhávamos junto com a multidão – mas em direções opostas.

Sábado foi sempre o dia de fazermos a feira juntos e esse era um dia feliz. Talvez seja por isso que sonhei com um desses dias maravilhosos em que nos divertíamos no meio das frutas e dos legumes coloridos. Raramente discordamos de alguma coisa nesse dia. Nossas opiniões sobre comida sempre convergiram para uma opinião comum.

Nesse sonho você estava bonita. Conservava o semblante rosado, salpicado por aquelas pequenas sardas que tanto encantam a mim. Você guardava um sorriso no canto da boca e a mão direita escondida no bolso do jeans desbotado, o que dava a impressão de que você estava tímida. Você caminhava a passos curtos e desinteressados, espontâneos.

Enquanto escrevo, a cachorrinha poodle que você me deu dá voltas na casa, do lado de fora, no quintal. Lembro-me do quanto já discutimos sobre ela. Lembro-me das tantas vezes em que ela fazia seu cocô no capacho da entrada da casa, lembro-me também das vezes em que abocanhou roupas suas no varal.

Você, no entanto, nunca cogitou em dar a pequena. Sua imensa generosidade sempre aceitou a Lily do jeito que era. Você iniciava uma discussão xingando a cachorra, mas terminava pedindo perdão a ela. Você a acariciava e balançava a cabeça em reprovação a si mesma, “É apenas uma pequena cadelinha.” Dizia você.

No meu sonho você estava de chinelos havaianas. Você nunca gostou de ver alguém em público com chinelos, mas naquela feira do meu sonho você deixou para trás toda rabugice que, porventura, tivesse em relação a isso. Você desfilava na multidão que murmurava junto com os pequenos caminhões de feirantes que chegavam ao lugar.

Você nunca gostou da combinação de chinelos com calças, por exemplo. Não importava o quanto a ocasião fosse informal: com a exceção de uma ida à praia, era proibido calçar chinelos da porta para fora da casa. Beatriz, seria impossível fora de um sonho imaginá-la caminhando na rua de calças e um par de chinelos havaianas.

Foi assim que sonhei você um dia. Um dia comum dessa semana que passou, terça ou quarta-feira. Antes da doença, era comum conversarmos sobre os sonhos, lembra? Eu contava os meus e você os seus. Aí, com ar de suspense, procurávamos com seriedade conjecturar sobre o significado dos sonhos. Líamos Freud e Jung.

Antes da doença, era frequente conversarmos sobre os sonhos. Depois não. Mas por quê? Acho que desenvolvemos um medo de compartilhar os segredos mais fundos de cada um de nós. Eu, ao menos, tinha medo de que você sentisse a minha tristeza profunda. Medo que você soubesse que tinha medo do dia em que eu iria te perder.

O câncer surgiu de uma ora para outra. Você passou mal, foi ao médico e ele encomendou exames. Depois, juntos, fomos ao especialista esperando o pior. E veio o pior, nas palavras cuidadosas do doutor. Ele disse no máximo seis meses. Nos abraçamos, você chorou, mas eu me mantive firme.

Gostaria que você hoje, de onde é que esteja, pudesse compreender o que eu realmente sentira àquela época. Não era forte, mas covarde, e não querendo que você me visse fraco eu escondia-me para chorar por você. Não sei se você alguma vez entendeu essa minha forma de amar você. Eu escondia minha tristeza silenciando o meu choro.

No meu sonho eu não chorava. Você passava por mim e o sentimento que tinha era que provavelmente fosse a última vez que eu veria você, mas também sentia que nenhum esforço meu faria com que você olhasse para mim e caminhasse ao meu encontro. Nada adiantou eu gritar, como lhe falei, pois nenhum som saía de minha boca.

A manhã que acabava de chegar por sua vez me inundou de raios de sol e eu fui ardendo aos poucos até irradiar luz na multidão. O sentimento de felicidade por ter você ali era imenso. E intenso: ver você mais uma vez fazia com que meu corpo esmorecesse e minha alma se incendiasse. Tudo em mim era alegria – uma tal alegria sem igual.

A cachorrinha lá fora está latindo. Enquanto eu escrevo vou escutando o ladrar para a rua. Como sempre, ela não suporta os animais da vizinhança. Sempre que alguém passa rente ao muro da frente da casa ela repete o ritual de pular até a altura do muro e latir muito. Não compreendo como ainda não conseguiu fugir de casa.

Foi o que fez você: você fugiu de casa um dia da mesma maneira com que fugiu de mim no sonho. Em um dia eu estava lá, ao lado do leito em um quarto de hospital, e no outro estava ao teu lado em uma cerimônia religiosa em que eu tinha a obrigação de conversar com todo o mundo. Mais cruel que isso foi o terceiro dia, em que passei a noite sozinho.

De fato, dei-me conta verdadeiramente de que havia perdido você no dia em que dormi sozinho sem você ao meu lado. E então chorei. Chorei por todos os dias e semanas e meses em que fui forte ao teu lado. Dias em que dissimulei o que sentia para não deixá-la preocupada. Ali, então, chorei por você. E chorei por nós dois.

E foi então que sonhei com você. O calor intenso, que senti no sonho, acordei com ele e foi aos poucos que acabou. E você tão linda eu perdi de vista em uma feira típica de fim-de-semana. Depois dessa noite eu não vi mais você, digo... há as fotos... mas nada como sentir de novo seu cheiro de fruta madura. O seu cheiro de abacaxi.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 30/07/2015
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T5329104
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