Algum engenho engenhoso (julho de 2015)

O salão estava cheio de gente. Gente de todas as idades numa mistura de pessoas da classe média e da classe trabalhadora. Estava apinhado de pessoas, distribuídas em vinte fileiras de cadeiras. Algumas pessoas esperavam o chamado a um guichê através da senha prioritária. Outras, como eu, esperavam o chamado através da senha comum.

Desempregados, todos nós. Cada um com sua versão diferente de CV acomodado no colo. Na demorada espera por um atendimento, as mil e uma informações registradas nos documentos passavam pela mente de cada autor. O medo de não ser aceito, de ter exagerado em uma informação, de ter medido em outra... tudo nos passava pela mente.

Ao meu lado, uma senhora que pela idade avançada não deveria estar ali, onde estava. Difícil era imaginar o que a trazia para a agência de empregos. Olhei para ela de cima a baixo e pude avaliar que tinha ao menos setenta anos de idade. Esta seria idade para aposentadoria. Não podia imaginar o que a trazia ali, àquela disputa por uma vaga.

Foi aí que resolvi interpelá-la. Perguntei para a senhora o que a trazia até lá, ao salão, perguntei qual teria sido sua ocupação até o dia em que tornou-se mais uma desempregada, como o restante no recinto. Ela me respondeu que eu deveria ir devagar, que fizesse uma pergunta e depois outra. Mas não negou-se a responder-me.

A senhora chamava-se Tereza e tinha sessenta e oito anos de idade. Trabalhou a vida inteira como merendeira. Explicou-me que trabalhava na cozinha de uma escola municipal de ensino. Por que estava desempregada? Não recebia pagamento na escola fazia mais de dez meses. E tinha família de filhos e netos para ajudar.

Tereza explicou-me que era a cabeça de sua família. Seus filhos estavam desempregados e deixavam três netos ainda na idade escolar para que ela, a avó, cuidasse. Para voltar a trabalhar como merendeira na rede pública, dependeria de um concurso público. Mas, para trabalhar particular como faxineira, não seria necessário.

Explicou-me muito mais do que lhe havia primeiramente inquirido, o que me deixou até meio sem-graça, mas ouvi a senhora atentamente. Sua filha engravidara duas vezes do mesmo marido, que a abandonou ao fim de um ano de nascida a segunda menina. O outro filho (a senhora tinha um casal) trouxe um menino de um casamento partido.

Expressei minha solidariedade para a pequena senhorinha – ela não tinha mais que um metro e cinquenta de altura e rugas que a cobriam das orelhas ao calcanhar. Expressei meu pesar pelo fato de ter de trabalhar até aquela idade para sustentar seu núcleo familiar. Sua vida não devia ser fácil.

Uma luz na placa na direção dos guichês piscou e uma atendente fez sinal para que o próximo viesse. Chamava uma pessoa com senha prioritária, o que me chamou a atenção a senhorinha ao meu lado. Quis ajudá-la e conferi a senha que, amassada, segurava em sua mão cerrada: não era sua vez mas, faltavam só cinco pessoas.

Feliz por sua vez estar se aproximando, Teresa continuou a confiar-me sua dura história de vida: com o passar do tempo, descobrira que a história de final de casamento que seu filho lhe contara tinha muito mais que lhe escondera. Sua mulher lhe abandonara com o menino porque ele se envolvera com traficantes de drogas.

Seu filho chamava-se Bruno e era um rapaz muito alegre e gentil. Sua mãe sofrera muito quando descobriu sua dupla vida. De que forma aquele rapaz feliz poderia ter se envolvido em um negócio tão arriscado como o tráfego de drogas? A história que contaram a Teresa era a de que ele voltara para casa para esconder-se de traficantes.

Como se isto não bastasse, havia ainda sua filha Maria com as duas bebês. A primeira com dois anos e meio e a segunda com um pouco mais de um ano. Também abandonada pelo marido, esta havia sido um pouco mais prudente: não se houvera metido em negócio ilícito; mas sim envolvera-se com um marido vagabundo. E alcólatra.

Maria era puxada mais à sua mãe, que mostrou-me sua foto. Muito franzina, não denotava especial beleza. Se não fosse a obrigação de ajudar a cuidar das duas bebês, ela teria certamente emprego que lhe ocuparia os dias inteiros da semana. No momento, não trabalhava por causa das bebês e dependia da mãe para o sustento de todos.

Muito comovido com a história de Teresa, eu lhe perguntei como havia chegado até ali. Afinal, teria de deslocar-se da periferia até o centro da cidade onde estávamos. Para minha surpresa, nenhum filho a havia ajudado a chegar até ali. Foi ela mesma que tomou duas conduções em busca de trabalho.

Teresa contou-me que lhe entristecera muito largar o emprego na escola pública. Para chegar até lá também tinha que tomar duas conduções para ir e duas para voltar. Mas é que já estava acostumada havia décadas naquele emprego. Só abandonou o lugar realmente porque não havia possibilidade de receber tão logo seu ordenado.

Uma luz piscou na direção dos guichês novamente, e desta vez era a placa com o chamado para as senhas comuns. Fiz uma continha rápida e vi que para mim faltavam dez pessoas até que pudesse ser atendido. Inesperadamente, o chamado do guichê tendo interrompido minha conversa com a senhora, caímos em um silêncio interminável.

Para minha surpresa, foi Teresa quem rompeu o silêncio entre nós. Quis saber se fazia muito que eu não trabalhava, quis saber qual o meu ofício... ao que lhe respondi que trabalhava no setor de corretagem de imóveis e ela fez como quem compreendia balançando a cabeça. Um anjo, dona Teresa me desejou sucesso em minha empreitada.

Depois caímos em um silêncio do qual era impossível que saíssemos. Eu e Teresa mantivemos os olhos hipnóticos, fixos, na placa que anunciava as senhas. Tudo já havia sido dito do que interessava ser dito. Tínhamos muito e tínhamos pouco em comum. Dona Teresa estava ali em nome dela e de outros cinco. Eu, apenas por mim mesmo.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 30/07/2015
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T5329109
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