Calíope
 
No limiar da insanidade equilibrava-se a poeta, as duas asas quebradas e o corpo a padecer de dores.
O destino impelia-a para o abismo como um vendaval a carregar folhas secas pelas ruas desertas do seu eu.
Não, ela não era um deserto e esforçava-se por manter esse pensamento fixo em sua mente. Atrás de si havia o mundo e o mundo era Mr Dalloway.

A figura do mestre delineava-se na penumbra. Seus braços fortes estavam sempre abertos, seus ombros largos eram o refúgio da moça.
O perfil de Mr Dalloway lembrava à visionária um símbolo antigo do budismo, a silhueta de um dragão que invocava a proteção. Ele era a sua proteção contra a loucura, o seu ponto de referência no caos que se tornaram os seus pensamentos.
Desejava o amor de Mr Dalloway com toda a sua alma mas não ousava dizê-lo porque era do seu sim que ela tinha medo. Seria semelhante a lançar imenso feixe de luz dentro da mais escura caverna, tirando a paz das criaturas da noite.
As vozes em sua cabeça falavam mais alto que a dos acadêmicos. Chamavam-na louca, zombavam de sua fragilidade, falavam dela como alguém que já tivesse morrido e ela mesmo não sabia em que dimensão estava. Um buraco imenso abrira-se-lhe no peito e a alma da donzela se irradiava em dolorosos espasmos de luz verde. Punhos penetravam-lhe o tórax pelos lados e suspendiam-na em pleno ar e no entanto ela não vibrava uma nota de dor. Mr Dallloway era a sua força, o seu motivo maior de resistência.

Sentada na cadeira fria a visionária mantinha os olhos fixos no mestre, como alguém que viajasse por planícies desérticas guiado por uma estrela. Quantas vezes em silêncio ela chorara em seus braços, olhara em seus olhos sem da boca escapar um "te amo" ou "preciso de ti". As palavras fugiam de sua voz e deixavam sua boca trancada a chave no entanto estavam todas escritas nos seus olhos, no seu passo incerto, na estiagem longa do seu corpo. Mr. Dalloway, em silêncio, lia atento as mensagens daquela alma angustiada e guardava tudo em seu coração. A vida, com seus tormentos e delícias, era viagem que a jovem fora destinada a empreender sozinha.

Das estranhezas, dera de comprar flores. Se antes preferia vê-las vivas, trazia-as agora agonizantes, magníficas rosas brancas, gérberas, amassando-as junto ao peito. Os carros quebrados, parados na rodovia lembravam-lhe do seu dever de seguir em frente pela estrada que era Mr. Dalloway. Os rios assoreados, sufocados sob tanta terra, mandavam-lhe lembranças de beijos molhados e a filha de Calíope fechava os olhos recostando-se ao tronco protetor de sua grande árvore.

De pé, a ouvir com atenção as nuances de voz dos alunos, Mr Dalloway contemplava cada um com a serenidade dos espíritos antigos.Seus olhos castanhos, voltados para o infinito, consideravam o correr do tempo como o fluxo ininterrupto de um rio. Mr Dalloway, o Senhor das Horas.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 11/08/2015
Reeditado em 11/08/2015
Código do texto: T5342721
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