o lobo

O pai caminhava até a sua cama e lhe dava boa noite com um beijo na testa, benzia-o desenhando no ar, próximo a fronte e ao peito, a mesma cruz que o seu falecido pai também arquitetava invisível e antes de fechar a porta, desligava o interruptor. Quando a luz do quarto se apagava tudo era devorado pela escuridão: os brinquedos, a cama, o guarda roupa e através das trevas o lugar se estendia ao infinito por todas as direções. Seus olhos sofriam com o luar parco e frio sobrando nas frestas das venezianas mas isso lhe servia de farol numa navegação insólita sobre um oceano noturno de aguas tornando-se tensas. Através delas soprava o uivo ensandecido de um vento frio que a noite lá fora trazia, invadindo o seu íntimo provocando tormento. Sentia-se caçado mais uma vez, aquela era a hora do lobo. A criatura o visitava todas as noites de insônia, mas nunca viu seus olhos navegando amarelos e demoníacos na escuridão. Conhecia apenas o seu cheiro forte. Sempre fazia do cobertor a sua última e frágil fortaleza.

Um dia criou coragem e perguntou a fera, aonde voce mora? e ele disse, por enquanto não tenho parada, mas um dia precisarei de você e você vai precisar de mim, um dia vai me dar abrigo e eu te darei proteção. O menino suava frio, o lobo falava sua língua. Desesperado sempre saltava da cama, as sombras da casa olhavam-no, riam-se do seu pavor. Frequentemente esquecia os chinelos mas lembrava, em momentos lampejantes de lucidez, da importância do seu travesseiro. passou pelo banheiro e chegou ao quarto dos pais. Seu pai não abriu os olhos e murmurou com sono: o lobo estava lá? o menino respondeu que sim.

Deitou-se entre os pais e eles estavam impregnados com o cheiro daquele animal. Todos adormeceram menos ele, que ficou ouvindo o pai e a mãe gemerem de sono como se fosse um grunhido de feras, era cedo para entender que aquele também um dia seria seu destino.

daniel mafra
Enviado por daniel mafra em 23/08/2015
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