"Um Bom Começo" = Histórias de Amor Safado

Alguns minutos depois que sorri para ela no restaurante fiquei sabendo que era caminhoneira.
- Caminhoneira?
- Isso mesmo. Dirijo um “bruto” imenso. Alguma coisa contra?
- Nada. Na verdade não tenho nada a ver com isso. Só achei um tanto quanto diferente sua profissão. Alguma coisa contra isso?
- Nada. É muito comum a sua reação.
- Vai pedir o frango ao molho pardo também?
- Claro. E dá pra perder esse prato nesse restaurante? Maravilha das maravilhas…
- Vamos ficar na mesma mesa?
- Nada contra. Mas na hora da conta é cada um por si, combinado?
- Que pena…Achei que ia ganhar um almoço da primeira caminhoneira que conheci na vida…Uma cerveja antes?
- De jeito nenhum. Álcool só em casa. E mesmo assim muito de vez em quando.
- Eu também não bebo antes de dirigir, mas vou dormir por aqui e agora à tarde não terei o que fazer. Nesta cidade tipo presépio só mesmo dormindo à tarde no hotel.
- Pensando bem, eu também não tenho o que fazer hoje à tarde. Vamos de cerveja. Fiquei com inveja de você e vou dormir também a tarde toda. Viagem mesmo, só amanhã de manhã.
Almoçamos durante um tempo imenso. Rimos, conversamos, contamos casos, piadas, aventuras e desventuras, acidentes que vimos, episódios que vivemos nas estradas desse país, abordamos de leve alguns problemas familiares e, ao fim da refeição, havíamos nos tornado amigos de infância.
Após o café nos levantamos da mesa com certa dificuldade e ela bateu de leve no estômago:
- Nossa mãe!! Se eu fosse uma moça mal educada diria que estou cheia.
- E se eu fosse um homem mal educado diria que estou entupido.
- Então, como somos gente fina, estamos ambos satisfeitos.
- É isso aí. Satisfeitos. Ou “sastifeitos”, como querem alguns. Vamos andar um pouco por aí pra fazer a digestão?
- Vamos. Você conhece algum lugar que valha a pena conhecer?
- É meio longinho pra ir a pé, mas conheço sim.
- Então vamos no seu carro. Preciso descansar da direção do “bruto”.
Peguei meu carro, ela embarcou, e fomos para um lugarzinho que eu gostava demais em Tiradentes: uma lanchonete improvisada ao lado de um riacho tão límpido e transparente que permitia ver até a cor dos olhos dos peixes. Com um certo exagero, é claro…
- Amigo, que delícia de lugar!! Coisa mais linda! Dá vontade de tirar a roupa e pular dentro dessa água agora mesmo.
- Melhor não. Com tanto frango ao molho pardo no estômago seria congestão na certa. Mas que dá vontade dá mesmo.
O dia quente, a quietude do lugar, a beleza incrível daquele pedacinho de mundo, a simpatia mútua entre nós dois, o silêncio quebrado apenas pelo canto dos pássaros, a tranqüilidade total de que ambos precisávamos, levaram-nos a um papo gostoso, descontraído, sincero e sem malícia ou segundas intenções. E foi sem segundas intenções ou premeditação que voltamos ao meu carro de mãos dadas e sorridentes.
A tarde caía, a noite chegava e os sons da natureza mudavam bem depressa quando ela apertou um pouco mais minha mão e disse baixinho:
- Que dia maravilhoso…
- Perfeito mesmo. Pena que está acabando…
Durante todas aquelas horas juntos não havíamos nos tocado, beijado, abraçado ou tido qualquer tipo de contato físico. Só nos últimos minutos nos déramos as mãos sem qualquer acordo prévio.
- Macia sua mão…
- Parece mão de caminhoneira?
- Parece a mão de uma mulher delicada que sabe cuidar dela. Ou melhor, delas. Aposto que a mão direita é tão macia quanto a esquerda.
Ela entregou-me a mão direita e constatei que era tão macia quanto a outra.
Apertei as duas mãos, aproximei-a de mim e dei-lhe um leve beijo no rosto.
- Foi bom demais te conhecer- dissemos ao mesmo tempo um para o outro e rimos da coincidência do modo de dizer e da simultaneidade.
Depois disso o beijo só podia ser na boca. E demorado. Muito demorado.
- Você é casado?
- Sou. E você?
- Também.
- Bem casada?
- Não. E você?
- Também não.
- Tem algum plano de vida?
- Nada que não possa ser mudado.
- Que tal a gente sair rodando pelo mundo afora sem destino algum?
- Maravilha, mas “com que roupa”?
- Eu vendo o caminhão, pego o dinheiro e a gente sai rodando por aí, sem destino, até o dinheiro acabar.
Àquela altura da vida eu não precisava pensar muito pra saber que nada tinha a perder. Topei no ato.
- É fácil vender o caminhão?
- Facílimo. Já tenho um interessado aqui mesmo na região. Um cara de uma transportadora de São João Del Rey está de olho nele. É só levar e vender.

Algumas horas depois dividíamos uma cama em uma das gostosas hospedarias de Tiradentes e a noite foi “quente”. Quente pra valer. Quando paramos de nos conhecer físicamente o dia vinha chegando de novo e ela escolheu esse momento para me contar a verdade sobre sua vida:
- Meu querido, vou te contar a verdade: eu não sou nem nunca fui caminhoneira. Sou uma filhinha de papai que nunca fez força na vida para coisa alguma. Você perdoa minha mentirinha?
- Perdôo, minha querida.
- De coração?
- De coração.
- Então me dá mais um beijo.
Dei o beijo que ela pediu, vesti-me e saí do quarto enquanto ela se vestia.
- Espere por mim para o café da manhã, meu querido.
Não esperei. Tomei uma xícara de café, entrei em meu carro, liguei-o e fui embora sem me despedir dela.
Creio que desde o tempo em que era apenas um menino sem malícia jamais aceitei um relacionamento começado com uma mentira. Qualquer tipo de mentira. Até do nome dela já me esqueci faz muito tempo.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 21/06/2007
Código do texto: T536195
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