OS ANZÓIS DE ALFENA

Lucrécio era um dedicado varejista. Estabeleceu-se em Moça Bonita do Norte antes da chegada dos grandes mercados. Procurando em caixas e pacotes acomodados em lugares escuros e empoeirados do seu estabelecimento, ele era capaz de encontrar o pedido do freguês por mais inusitado que fosse.

Pão, bola de futebol, shampoo e aguardente. Marmelada, feijão e arroz. Manteiga, baunilha, naftalina ou almanaque de curiosidade. Lucrécio gostava de vender e contar o dinheiro.

Lucrécio não cuidava apenas do caixa. Quando algum dos funcionários se atrapalhava com algum pedido, ele avocava o atendimento. Passava a mão pela calvície e desaparecia nos corredores estreitos em busca de pentes, espelhos, passadores ou pregos.

Nada se comparava a vender. Para dissimular a avidez, enquanto contava o dinheiro e fazia o troco, introduzia uma conversa acerca da situação política.

Agora, melhor ainda, era atender pessoalmente a jovem que imprevistamente surgira em sua vida. Perfumada, voz macia, polidez, roupas da moda. Nada de preço especial, mas, caso Alfena não aparecesse para comprar o leite desnatado

E as bolachas, o dia não era o mesmo.

Ao nascer do sol, o estabelecimento já estava aberto. Lucrécio vendia batatas, sabonetes, latas de sardinha, cestinhas de agulha, azeitonas e bandejas de queijo. Tomates e ervas de cheiro. E também, é claro, as bolachas e o leite desnatado reservados cuidadosamente.

Lucrécio era materialmente realizado. Para tanto, contribuíram o trabalho e a herança recebida dos pais. Deleitava-se ao ver o saldo bancário. Brincava com os números, e eles lhe faziam surpresas reveladoras. Desejasse, ostentaria riqueza, sairia em cruzeiros pelo mundo. Porém, não era dado a esbanjamento. O que lhe fazia sentido era vender e guardar o dinheiro.

Entretanto, passou uma semana e Lucrécio sentiu-se menos afortunado. O leite e as bolachas de água e sal perderam a aura. Alfena não aparecera. Lucrécio vendia ovos, legumes, doces, mas já não era como antes.

Nervoso, ele incumbiu ao Quinha, ajudante de máxima confiança, apurar o que sucedera. O jovem, percebendo o interesse do patrão, bateu à porta de Alfena com a atenção esporeada. Voltou sem fôlego. Ela estivera visitando parentes, e o patrão tinha que ver a camisola dourada e transparente de Alfena.

Moço atrevido! Alfena era especial. Não tinha visto nada, senão, estava desgraçado. Desde então, a transparência dourada da camisola de Alfena excitava a imaginação de Lucrécio.

Alfena passou a ser uma ideia fixa. Involuntários toques nas suas mãos ao apanhar o dinheiro e entregar as compras... e que mãos. Untadas em creme, macias, alvas, perfumadas. Unhas rubras. Embora gasto pela idade, desejava ardorosamente aquela mulher. Continha-se. Massa, cebola, iogurte, açúcar e dentifrício. Lucrécio gostava de feirar e contar o dinheiro. Mas, já não considerava vender a sua única satisfação.

A ordem das coisas começou a mudar em sua vida. Primeiro era Alfena, depois, o negócio. Embaraçava-se frente ao decote provocativo, diante dos seios viçosos e macios ao passeio do olhar.

Ia-se o tempo, e o solitário Lucrécio passou a ter problemas com a saúde.

Certa ocasião, acordou pensando na sua fortuna. Não tinha mulher, filhos, nem parentes.

O bom e idoso mercador trabalhou até às vésperas da morte, mas nunca declarou seu apego, embora tivesse oportunidade, tal a incitação dos olhares, e os toques "descuidados" de Alfena ao apanhar a compra e passar o dinheiro.

Além de um codicilo que contemplou uma instituição filantrópica, uma parte dos seus bens, em cumprimento de última vontade, coube ao Quinha, seu fiel ajudante. E a outra, bem mais substanciosa, para espavento geral, destinou-se à Alfena. Quinha se tornou um empresário de respeito. Investiu em recursos humanos e técnicas de venda.

Alfena, após receber o legado de Lucrécio, desapareceu. Tempos depois, é que se teve notícias. Soube-se que ela passou a ser vizinha de um solitário e idoso forra-gaitas, outrora mazombo, mas já agora surpreendentemente afável para desafogo do seu jovem criado.