“Lugar dos Outros”

Deputado Ítalo Toloi era um político pautado nos ideais conservadores da direita [quando ainda havia distinção entre ela e a esquerda]. Naquele mês de julho, ele e seus colegas [na calada da noite] conseguiram dar um importante passo para a aprovação duma polêmica lei. Lá pelas duas e meia da madrugada, após o término da sessão, saíram a fim de comemorar o feito. Ítalo, no intuito de beber, deixou seu carro no estacionamento da câmara e foi de carona. Quando findaram as comemorações o sol já raiara, e Ítalo, como estava apenas a dez minutos a pé de sua casa, decidiu ir andando. Despojado, usando o braço de cabide para o terno, com uns botões da camisa abertos e as mangas enroladas, lá foi ele, meio alto, tranquilamente pelas ruas ainda desertas, sentindo a brisa matinal beijar seu rosto rosado.

Até que na direção contrária surge um menino, ao notar que o pequeno é de cor, julga se tratar dum pivete, então mais que de pressa disfarça e enfia a mão [onde está seu Rolex] no bolso da calça e segue, agora um tanto tenso. Conforme o menino vai se aproximando, ele confirma que se trata dum menino de cor, mas não é um preto, e sim um vermelho, um indiozinho, ufa... O pequeno pataxó traz consigo uma esteira repleta de colares – Bom dia senhor? Falou o menino – Não, não, eu não quero comprar nada, se antecipou Ítalo – Nem eu quero lhe vender, replicou o garoto – Na verdade eu quero lhe presentear com um dos meus colares. Envergonhado e constrangido pela grosseria que fizera, Ítalo, não diz uma palavra [nem obrigado] apenas estende a mão para apanhar o presente – Não senhor, o nome desse colar é “lugar dos outros”, devemos pô-lo sempre. Ítalo ainda que contrariado, põe o tal adorno, e continua em seu caminho, agora apressadamente.

Ele queria sair logo da vista do menino para tirar o colar e jogar fora, no entanto, antes que pudesse fazê-lo, teve um mal súbito e desmaiou. Ítalo Toloi acordou horas, ou quem sabe dias depois, aos gritos duma mulher – Levanta miserável, vai logo pra rua arranjar dinheiro pra eu e teus irmãos comer. Sem entender o que estava acontecendo ainda meio zonzo Ítalo demorou alguns instantes para responder o chamado, isso foi o suficiente para levar um safanão. Quando Ítalo se pôs de pé para reagir à agressão e se deu conta de que não estava em seu corpo, e sim no corpo de um pretinho raquítico de aproximadamente uns seis ou sete anos, e percebeu que não teria forças para tal, então protestou – Quem tem que te dar dinheiro é teu marido! Respondeu Ítalo de modo rude – É assim que tu fala com tua mãe excomungado? E tu não sabe que aquele cachaceiro do teu pai morreu atropelado? Toma, toma, toma... Ítalo levou uma surra daquelas – Agora vai, antes que eu te mate! Completou a mulher.

Temendo lá foi ele, com os lombos doloridos, conseguir dinheiro. Ao sair do cubículo em que estava, sentiu um forte cheiro de esgoto, e notou que havia uma vala bem em frente à porta, viu também que, esta que saíra, e as demais casas ao redor eram todas mal-acabadas ou velhas, e que não havia pavimentação, escolas ou quadras poliesportivas ali. A essa altura Ítalo tinha a certeza de que aquilo tudo não passava dum pesadelo [mas como explicar a dor da surra?]. Enfim, após andar alguns quilômetros sem rumo certo, Ítalo chegou a um centro comercial onde havia uma grande placa dizendo: Bem-vindo à Anciolândia. Deduziu que se tratava duma cidade feita especialmente para idosos. Sentou-se num banco da pracinha e ficou observando o vai e vem lento da população, até que lembrou que se voltasse para casa sem dinheiro ia apanhar de novo, então se levantou e começou a esmolar – Por favor, senhor, dê-me um trocado, por favor, senhora, dê-me um trocado! Depois de meia hora ele sentiu-se invisível, já que todos o ignoravam. Já se passava bastante da hora do almoço e Ítalo sentia uma baita fome. Chegou a uma lanchonete onde alguns anciãos comiam e pediu que alguém lhe pagasse algo, de repente se aproximou um segurança [também ancião] e de modo ríspido e xotou-lhe dali.

Conforme a hora passava, o desespero e a fome de Ítalo aumentavam, até que ele não mais suportou e decidiu mudar o método de abordagem, aproximou-se de outro ancião que jogavam damas e disse: Sabe qual é tio? To com fome e quero um trocado para comer - Polícia, polícia, um “de menor” está tentando me matar! Gritou o velho. Quando Ítalo olhou ao redor viu vários policiais bem armados se aproximando, em seus uniformes tinha uma sigla, EAM [Esquadrão Anti-Menor]. Ele até tentou correr, mas foi atingido por uma descarga elétrica de taser. Ao vê-lo caído os tiozinhos que ali estavam comemoraram, e aproveitaram para aplicar-lhe, bengaladas e pontapés [tudo com o aval do Esquadrão Anti-Menor]. Ítalo foi levado ao Complexo de Segurança Máxima Para Menores de Idade depois dum rápido julgamento [sem advogado de defesa] realizado no mesmo dia, e foi condenado há 45 anos em regime fechado sem direito a condicional.

Ítalo foi enquadrado numa lei especial de tolerância zero para os “de menor”. Se um deles defecasse ou urinasse fora do pinico, golfasse, chorasse, ficasse com o nariz escorrendo ou até babasse, já corria o sério risco de passar seis meses atrás das grades. Isso aconteceu depois que uns políticos a fim de diminuir a criminalidade aprovaram uma lei apelidada de “A Ordem de Herodes” [referência ao texto bíblico em que o rei Herodes mandou matar todas as crianças menores de dois anos]. A princípio eles começaram a responsabilizar os de 16 anos, e daí foram diminuindo para 14, 12, até chegarem a zero ano de idade.

Dividindo uma cela úmida e escura de 5X5 com cerca de uns 23 menores de idade, Ítalo Toloi chorava diariamente, chorava, chorava... Acorda, acorda... Alguém sacode Ítalo – Está na hora da votação! Ítalo Toloi dormiu em sua cadeira enquanto aguardava a hora de dar o seu voto para a diminuição da maioridade penal – Ufa, tive um pesadelo horrível! Falou Ítalo – Vamos logo aprovar essa lei, continuou seu amigo. Ítalo, com o rosto suado e ainda abalado pelo pesadelo, não pensou duas vezes, e votou “não”. Logo foi cercado por seus correligionários que lhe indagaram: Depois de tanta manobra tu faz um papelão desse senhor Ítalo Toloi? É, alguém me disse certa feita que temos que nos colocar no lugar dos outros. Automaticamente Ítalo se lembrou do pequeno índio pataxó que lhe deu esse conselho no sonho, sonho? Ítalo levou a mão ao peito e percebeu que o colar estava lá em baixo de sua blusa. Ítalo nunca mais foi o mesmo depois de se colocar no “lugar dos outros”.