CLEONTINA, TINA, TININHA . . .

Cleonice fora uma mulher de fibra. Trabalhadora, honesta, bom caráter, religiosa.

Só não dera sorte com o marido, que a largara nova, grávida, doente e sem recursos.

Mesmo assim conseguira criar sua filha e enfrentar as dificuldades. Caprichosa como era, não demorou a conseguir emprego na casa do juiz Bellani, com direito a um cantinho, no fundo do quintal, onde dispunha de quarto, banheiro e mini cozinha, com cercadinho, junto à construção, onde organizou uma hortinha e deixava sua menina brincar. Ali trabalhou e morou por treze anos, até que um mal súbito encerrou sua lida, seus planos e sua existência.

Cleontina tinha quatorze anos e alguns meses à época.

Tímida, ao extremo, chorou um choro contido no velório de sua mãe, no hospital.

Ninguém apareceu. Nenhuma flor, nenhuma mensagem, nenhuma condolência.

A mulher foi enterrada às expensas da prefeitura, em cova coletiva, e saco de cadáver.

Tina, como a mãe a chamava, cursara os quatro primeiros anos do ensino fundamental e largara a escola para ajudar nos trabalhos domésticos, embora nunca tenha ganho qualquer remuneração, até aquela data. De temperamento dócil, era delicada no trato, ágil e silenciosa, com olhar inocente de quem se mantivera apartada do aspecto mais leviano e sombrio da vida.

Ao voltar para aquela casa, onde vivera desde sempre, desde neném, assustou-se.

Na entrada da garagem, seus poucos pertences estavam encaixotados. Logo avistou o juiz, que os colocava no bagageiro de seu veículo, e ao vê-la, avisou que não mais precisariam de seus serviços, mas arranjara para ela um lugarzinho especial, ótimo para viver. Convidou-a a embarcar, seguiram para a periferia, e num bairro distante, de aparência suspeita, parou em frente a uma danceteria, fechada àquela hora, indicando uma escada lateral, por onde subiram até encontrar corredor estreito, com quatro portas, uma das quais abriu e ambos entraram. O lugar fedia a mofo, tinha quarto minúsculo, com cama de casal velha, cômoda desconjuntada, pequena pia com fogãozinho de duas bocas e banheirinho contíguo. Tudo muito sujo, decadente, escuro. Porém, a menina nem teve tempo suficiente para se familiarizar com aquele sórdido ambiente, antes que o homem a empurrasse para a cama, rasgasse suas roupas e a forçasse ao sexo. Amedrontada e confusa, simplesmente, desmaiou.

Quando acordou, suas coisas estavam empilhadas perto da porta, e ele se fora. Não teve forças para reagir, e permaneceu deitada, chorando, até adormecer, novamente. Ao longo de alguns dias, apenas acordava, ouvia ruídos, gritos, música, tiros, chorava e dormia de novo.

Depois de onze dias, o senhorio, homem rude e de poucos amigos, achou estranho o silêncio e usou sua chave reserva para fuçar, encontrando Tina inconsciente, na cama, em meio a fezes, urina e sangue. Sem saber o que ocorrera, e com medo das autoridades, pediu ajuda e a levou até o hospital, mas abandonou-a na primeira maca que encontrou, logo à entrada, e partiu, antes que alguém o visse. Achando que a menina fosse morrer, deu um fim a todos os seus pertences, jogou fora o colchão e limpou o quarto, obrigando os presentes a silenciarem sobre ela, sob pena de serem despejados dali ou coisa pior.

Quando a encontraram, na maca, toda suja e ensangüentada, chamaram a polícia. A médica encarregada logo a encaminhou para os cuidados necessários, verificando que seria preciso uma batalha, para evitar que morresse. Ao longo do tempo em que esteve na UTI, os policiais tentaram identificá-la, sem sucesso. Suas digitais não tinham registro, ninguém sabia nada a seu respeito e só o que conseguiram concluir é que sofrera abuso sexual.

Um mês e meio depois de sua internação, Tina abriu os olhos e sorriu para a enfermeira. Logo todos se aglomeraram em torno daquela figura franzina, querendo ouvi-la dizer algo. A médica se adiantou e fez as perguntas de praxe, avaliando sua memória, mas apesar de poder dizer seu apelido, não sabia mais nada, não lembrava de nada, nem do próprio nome. Até que pudesse estar em condições de receber alta, ainda ficou mais algumas semanas no hospital, e andava por todo lado. Nas duas últimas semanas, visitava, diariamente, a ala infantil, ficando horas entretida com as crianças, brincando, ajudando as enfermeiras a medicá-las e limpá-las.

Quando resolveu lhe dar alta, a médica, que já sabia de suas atividades ali dentro, quis observar, mais uma vez, sua desenvoltura e disposição, ao realizar aquelas tarefas. Sabendo que a menina não teria para onde ir, tomou a decisão de mantê-la em sua equipe, arranjando para que tirasse os documentos necessários. Levou-a a morar consigo, já que vivia só, e uma companhia agradável como aquela, talvez trouxesse mais vida ao seu cotidiano.

Tina gostava da doutora Márcia, e as duas logo se tornaram amigas. Nem sua gravidez, como resultado da desventura com o juiz, representou problema, e o menino nasceu forte e saudável, recebendo o nome de Lauro, em homenagem ao pai da médica.

Os anos passados no hospital, ensinaram muita coisa a Tininha (agora era assim que as crianças e todos os demais a chamavam), e a própria doutora Márcia fizera dela uma excelente enfermeira, mas continuava doce e afável com todos, simples e humilde como fora desde o início, tímida e silenciosa; sempre com um sorriso no rosto e disposta ao trabalho. Seu garoto recebera todos os cuidados da mãe, da madrinha (Márcia), e agora trazia a notícia que passara no vestibular para medicina. Houve festa, no hospital, e Tininha chorava de alegria.

Conforme se aproximava a formatura e residência do rapaz, ela via que ele preferia conversar com Márcia, e se esquivava da mãe. Ela, mesmo entristecida, se convencia de que isso se devia ao fato de ambos falarem sobre coisas, das quais pouco entendia. Na colação de grau, apresentou a madrinha aos colegas e professores, sem mencionar a mãe, e quando se estabeleceu, com colegas, abrindo pequena clínica, não a convidou para a inauguração.

Por essa época, Márcia ingressou no Médico sem Fronteiras e se ausentou do país por alguns anos, voluntariamente. Deu uma boa quantia em dinheiro ao seu afilhado, para ajudá-lo no início da vida profissional, enquanto Tininha continuaria vivendo em seu apartamento e trabalhando no hospital, além de cuidar de seus interesses e suas coisas, em sua ausência. Ao retornar, após sete anos, ao mesmo tempo em que estava doida para matar a saudade de seus queridos, estava decidida a brigar com a amiga. Ela parara de lhe escrever seis meses após sua partida, embora Lauro continuasse a se comunicar, por carta e fone, regularmente. Se lhe perguntava sobre a mãe, ele desconversava e dizia que ela era cheia de manias, e só.

Márcia chegou ao apartamento, e ao entrar teve a primeira surpresa. Tudo ali estava mudado, como se fosse outro lugar. Uma mulher veio ao seu encontro, e ante sua expressão de assombro, apresentou-se como Lilian, esposa de Lauro. Esposa? Como ele não lhe dissera nada a respeito? Mas nem bem assimilara a notícia e ouviu um choro. Antes de seguir para o quarto, a menina informara que tinham um filho, com quase dois anos, chamado Márcio.

Enquanto a mulher, ainda estranha, atendia o filho, ela olhava tudo em volta, sem lograr identificar seus cantos, suas coisas. Nada lhe era familiar. Onde estavam seus pertences? O que fora feito de seus quadros, seus objetos, suas coisas pessoais? Onde estava Tininha?

No mesmo instante em que Lilian voltou, carregando a criança, Lauro chegou da rua e a viu, pasmada com tanta coisa diferente. Abraçou-a e disfarçou uma insegurança, perguntando se gostara da reforma que fizera no apartamento. Ela não quis questionar, logo de cara o que ainda estava meio obscuro, então disse que conversariam sobre aquilo depois e perguntou ao rapaz pela mãe. Ele hesitou, gaguejou e, finalmente, disse que ela não morava mais ali. Como assim? Onde morava Tininha? Ele recitou um terço de justificativas, para dizer que a interditara e internara numa clínica para doentes mentais. Doentes mentais?

Márcia não quis saber mais nada. Apenas pediu o endereço e seguiu para lá.

Durante o trajeto, não conseguia entender o que ocorrera, mas preferiu ver para crer, e quando chegou ao lugar, constatou que, entre tantas opções de clínicas especializadas, aquela estava entre as piores da região. Só conseguiu ser atendida, porque era médica e ligou para alguns conhecidos, cuja autoridade abria portas. Ao adentrar a instituição, ficou assustada com a sujeira, o abandono e o desrespeito para com os internos. Teve de andar por várias alas, procurando por Tininha, pois ninguém sabia dizer onde se encontrava, até que uma das pacientes, uma velhinha, a ouviu dizer o nome e avisou que sua amiguinha estava trabalhando na cozinha. Seguindo as indicações, Márcia chegou a um local infecto, fedido, gosmento, cheio de insetos, que de cozinha quase nada tinha e onde oito mulheres desenvolviam tarefas, com os pés acorrentados a um poste de concreto. Todas estavam, parcialmente, sedadas, sujas e vestidas apenas com uma camisola estropiada, conseguindo se movimentar com dificuldade.

Foi difícil reconhecer a amiga, naquela situação, e não foi reconhecida, em troca.

Chorando, gritou que a soltassem e todas as demais. Assustados, os funcionários não se negaram a obedecer. Pegou-a no colo e a levou para o hospital, cuidando, pessoalmente de sua recuperação, não se afastando dali por dias a fio. No ambiente hospitalar, muitos eram conhecidos de ambas, e se emocionaram com o que presenciavam.

Quando, enfim, Tininha abriu os olhos e viu sua amiga, sorriu aquele sorriso tímido e doce, que era sua característica mais atraente. Márcia não teve como deixar de associar com o momento em que a conhecera, muitos anos antes, naquele mesmo lugar. Abraçaram-se muito, choraram muito, e, quando se falou das mudanças e do porquê de sua internação, Tininha não teve como conter as lágrimas, novamente. Márcia, evitando sobrecarregá-la, apenas perguntou se Lauro a obrigara a sair do apartamento e a assinar documentos, transferindo-lhe os direitos de movimentação das contas e administração de seus bens, que deixara a cargo da amiga.

Tininha não conseguiu responder. Chorou e disse que amava o filho.

Márcia beijou-a e, pela primeira vez, em dias, saiu do hospital direto para a clínica de Lauro. Lá chegando, chamou todo o corpo clínico para uma sala e aguardou um bom tempo, até que pudessem atendê-la. Ninguém sabia do que se tratava, nem o que aquela mulher queria, mas era médica renomada, e por respeito profissional responderam ao chamado.

Lauro foi o último a entrar, e quando viu todos em volta de Márcia, ficou surpreso, sem saber como reagir, e nem teve tempo de sentar, antes dela se dirigir a seus colegas, contando tudo que se passara nos últimos dias, além de uns episódios antigos, evidenciando o fato de ele não ter visitado a mãe no hospital, nem uma vez, apesar dos avisos que recebeu. Não deixou que o rapaz se manifestasse e acrescentou que foram feitos todos os exames de sanidade possíveis, e Tininha estava mentalmente sadia, apesar de fisicamente debilitada, pelos maus tratos sofridos, no pardieiro em que fora internada. Salientou que a atitude que ele tomara, em relação aos seus bens, totalmente arbitrária, já era absurda, mas o que fizera com a mãe, era imperdoável. Ela o queria fora de sua casa e de sua vida.

Os presentes olhavam para Lauro com um misto de incompreensão e nojo, e deixaram a sala sem dizer uma palavra. Ele não tinha coragem de olhar para sua madrinha, e chorava como talvez nunca tivesse chorado até então. Só não conseguiu sensibilizá-la, que o deixou ali e voltou ao hospital, com roupas novas para sua querida amiga e irmã. Não lhe disse nada sobre o que fizera, mas levou-a para seu apartamento, pensando em lhe dizer que o filho tinha resolvido se mudar. Ao lá chegar, deu de cara com Lilian e percebeu que ela e Tininha não se conheciam. Ao apresentá-la como mãe de Lauro, a mulher se espantou, porque o marido lhe dissera que a mãe morrera muitos anos antes. O impacto da revelação provocou um silêncio constrangedor, quebrado apenas pela chegada do rapaz, naquele mesmo instante, trazendo caixas do que seriam pertences pessoais profissionais. Soube-se depois, que logo após a saída de Márcia, seus colegas o chamaram e pediram que se retirasse, imediatamente, da sociedade. Ao entrar no apartamento, Lauro deu de cara com as três, e entendeu, sem precisar de qualquer explicação, que não havia o que dizer ou fazer, senão sair dali, depressa.

O choro da criança soou e chamou a atenção de Tininha, que correu até onde estava o menino, pegou-o no colo e o embalava, cantando uma canção. Era a primeira vez que tomava contato com o neto, após anos excluída da vida de seu filho e daquele lugar. Não havia espaço em seu íntimo para mágoa. Sorria e cantava para a criança, contente em embalá-la.

Lilian acabou se revelando ótima pessoa, e passou a repartir o apartamento com Márcia e Tininha. Não conseguiu perdoar a atitude medonha de Lauro, apesar de amá-lo, e concordou com Márcia, quando esta o expulsou dali. O jovem médico teve sua reputação arruinada, com a notícia que se espalhou, a respeito de suas atitudes, e teve de buscar serviço no interior, bem longe da capital, em hospital modesto. O trauma o alterou tanto, que abandonou seu jeito arrogante, ambicioso, tornando-se mais humano e cordato. Ainda havia jeito para ele.

Tininha era a única que lhe escrevia, contando sobre sua esposa e filho.

Lauro, enfim, reconhecia o amor incondicional de sua mãe, e sempre que respondia as cartas, tinha de enviá-las borradas, pelas lágrimas de remorso, que o acometiam.

Ela lia as respostas, geralmente à hora de deitar, guardava com cuidado, o envelope, e recostava no travesseiro, esperando o sono chegar. Naquela noite, assim que fechou os olhos, uma luz a envolveu, e se ela pudesse vislumbrar o que acontecia, teria visto sua mãe, beijando sua face e desaparecendo, do mesmo jeito que ali surgiu. O amor de mãe nunca morre.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 14/09/2015
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