ferida de morte

Abri os olhos e não pude acreditar no que via. Fiquei como estava até quando percebi que o menino estava vindo em minha direção. Agora sim, levantei-me e sai com a cabeça baixa, com os passos calmos que foram acelerando à medida que os passos do menino se faziam mais apressados e os sentia mais perto de mim.

- Tia, Ô tia! Espera aí.

Eu nem sei o que me deu. Eu queria continuar, mas minhas pernas permaneceram imóveis até chegar ao ponto em que não podia mais senti-las. Meu Deus! – pensei. Aliás, não pensei em nada. Não pensei em ninguém. Virei.

O mesmo menino que estava com o canivete no pescoço do rapaz, que pegou o relógio do rapaz e deixou uma marca no rapaz, estava na minha frente. Com o mesmo canivete e a mesma coragem.

- Tia, tem uma coisa no meu olho. Vê o que é?

Aproximei meu rosto do dele sem saber que aproximava, olhei nos olhos dele sem saber que olhava e só acordei quando me enxerguei ali na minha frente. Afastei meu rosto e olhei a praça deserta.

- E aí, tia? Meu olho ta ardendo!

Voltei a observar. Quer dizer, desta vez eu realmente observei. Soprei o olho dele. Ele riu. Eu também ri. Na verdade, esbocei um sorriso.

- Melhorou. A senhora é cheirosa. Minha mãe também era cheirosa. E ela amarrava o cabelo desse jeito.

- Não amarra mais? – perguntei.

- Ela morreu.

Ele se sentou no gramado da praça deserta e, sem que me convidasse, sem pensar, eu sentei também. Soltou o canivete, deixou-o de lado. Começou a brincar de fazer animaizinhos com as sombras das mãos nos espaços que as copas das árvores reservam aos raios de sol.

- Ela me contava historinha assim. – Disse apaixonado, com saudades nos olhos.

- E o seu pai?

- Sei lá, eu nunca vi. – respondeu-me sem alterar em nada o seu semblante. Continuou a torcer os dedos e a sorrir.

E sorria, e me contava suas memórias e seus segredos. Um menino de apenas onze anos. E ao redor do menino tudo parecia pequeno perto do que a mãe foi um dia e continua sendo dentro dele. E olhava o céu e as ruas sem carros que ficam maiores e os olhos dele se enchiam de flores por um instante, curto instante. Não digo esperança. Ele nem conhecia esta palavra.

- E então, tia? O que é esperança?

Talvez para ela não seria tão difícil quanto foi para mim. Tentei comer pelas beiradas, ganhar tempo. Abri a boca e falei tudo o que ele não podia ouvir:

- A esperança é a ultima que morre.

Ele olhou para mim como nunca ninguém havia olhado e me fez sentir que eu tinha feito algo errado.

- Então eu não tenho mais...

E saiu correndo. Agarrou o canivete e saiu correndo. Nem me deixou argumentar. Ele sabia que eu não tinha como explicar. A praça continuava deserta e eu não lembrava mais por que estava chorando, com os olhos fechados e a cabeça baixa.