Um azarado de sorte

Onze e meia da noite, foi pegar o último cigarro antes de se deitar, abriu o maço e constatou que o último se fora durante o jogo, estava tão entretido que nem reparou. Não tinha como engolir aquela eliminação do seu time sem pelo menos um cigarro antes de dormir, desde que tinha se mudado para aquele bairro evitava sair à noite, mas resolveu ir ao boteco mal-afamado da rua de baixo.

Desceu de chinelo mesmo, bermuda e camiseta, não levou celular nem carteira, apenas pegou uma nota de dez e foi. Desceu do elevador e já foi zoado pelo porteiro, torcedor do rival, que também assistiu à partida só pra torcer contra, na pequena TV que tinha na portaria. Saiu do prédio, virou à direita e foi andando lentamente. Se tivesse um cigarro já fumaria ali mesmo.

Pouco depois de virar a esquina, viu uma moto com dois sujeitos subindo a rua bem devagar adiante, e ele achou suspeito os dois passarem em frente ao bar olhando pra dentro, talvez conhecessem alguém, mas como não acenaram nem nada, talvez este alguém não estivesse lá. Pensou que ficava muito desconfiado nesta cidade, não deveria ser nada, e acompanhando visualmente a cena, pisou num coco de cachorro.

Praguejou internamente, pensou ser muito azarado mesmo, derrotado na primeira eliminatória para aquele timinho sem expressão nenhuma e com nome de loja de material para construção, sem cigarro e tendo que sair aquele horário, já pensando naquele chato do trabalho amanhã, e ainda pisa na merda de chinelo, do jeito que chega a sujar os dedos do pé. Que saco, nem viu mais a moto virar a esquina.

Limpou o chinelo e esfregou os dedos na grama de um canteiro, andou mais vinte metros e entrou no bar. Uma TV ligada no pós-jogo e as caras desanimadas dos três clientes que estavam na única mesa ocupada denunciavam que pelo menos todos torciam pro mesmo time que ele, já sabia do dono do boteco por causa da bandeira que estampava esta paixão ostensivamente, no meio das prateleiras com as garrafas na parede.

Entrou, olhou para todos e disse boa noite, olharam pra ele de chinelo e acenaram com a cabeça, não dando importância àquele sujeito que nunca tinha aparecido ali, mas como estava quase de pijama e chinelo deveria ser vizinho. Cumprimentou o dono do bar e pediu um maço da sua marca.

- Não é possível que um campeonato internacional tão importante dependa de uma arbitragem tão sem-vergonha que nem foi hoje, aqueles dois impedimentos no primeiro tempo, e não ter marcado o pênalti, vergonhoso. Toma aqui o seu troco, freguês, torce pra que time?

Pegou o maço do balcão e quando estava prestes a responder, escutou o primeiro tiro. Congelado pela ação da adrenalina e por não ter pra onde correr, ficou ali estático, olhando os dois sujeitos daquela moto, ainda de capacete, atirando contra os ocupantes da mesa a partir da porta.

Três tiros em cada um, dois no peito e um na cabeça, os quatro estavam mortos, sangue espalhado pela parede de azulejos brancos, a cadeira de um ocupante vai pendendo lentamente para trás e o derruba no chão, enquanto o dono da bodega levanta-se de trás do balcão com uma pistola, neste momento ele se agacha no chão, sem sair do lugar, e põe as mãos nos ouvidos.

Escuta mais alguns tiros e o barulho de um corpo caindo atrás do balcão, levanta a cabeça e olha no sentido da porta, vê que um dos matadores leva uma das mãos ao braço que ainda segurava a arma mas sangrava, ao lado do outro que lhe apontava a arma, fechou os olhos quando sentiu o ímpeto do disparo e escutou um clique seco, o cão atingira uma cápsula já deflagrada, o sujeito estava sem munição.

Ele foi até o seu companheiro e disse – Me dá o seu revólver que o meu tá sem, pra terminar esse aí. – Dito isto, pegou o revólver do outro, deu um passo pra frente, e a cena se repetiu, os olhos fechados, o clique seco, aquele cheiro de pólvora queimada e do sangue que já chegava quase até o pé do sujeito agachado em frente ao balcão.

O matador frustrado diz ao seu companheiro – Me dá a sua pistola que eu termino.

- Você tá louco que eu vou te dar minha arma registrada, Zé, deixa esse aí que a gente ta de capacete e ele já tá até mijado, olha aí, nem tava no pacote esse aí mesmo, ia só de gaiato mesmo.

O sujeito que estava com dois revólveres nas mãos, diz, calmo como se nada tivesse ocorrido – Você tá com sorte mesmo hoje hein, pode ir cantar parabéns a você duas vezes porque você nasceu de novo. Se esse filha da puta do bar não tivesse sido esquivo sobrava bala pra você, mas parece que é seu dia de sorte.

Dizendo isto, chutou uma cadeira de plástico no sentido do rapaz agachado, que permaneceu estático e de olhos abertos até que o barulho da moto não era mais ouvido, continuava olhando para a porta. Já nem sabia mais se estava com azar ou com sorte a esta altura.

Levantou-se, reparou que o maço de cigarros ainda estava na sua mão, embora um pouco amassado. Tirou o lacre plástico, e foi caminhando até a porta, tomando cuidado para não pisar na poça de sangue, tirou um cigarro do maço e pensou no que a sua consciência sempre lhe avisava, “este cigarro ainda vai acabar te matando”.

Não conseguiu nem rir de sua própria ironia internamente, como sempre fazia. Acendeu o cigarro atravessando a rua, rumo a um telefone público.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 18/09/2015
Reeditado em 20/09/2015
Código do texto: T5386085
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