O pequeno Daniel (setembro de 2015)

Seu jardim está florido. O jardim de pai e mãe. Daniel vê o sol no jardim. O sol que aquece o jardim. Que beleza de histórias envolvem este lar. O lar de pai e mãe que está florido. O seu jardim é igual a nenhum outro jardim. Seu jardim é bem-cuidado, há sempre sol e a grama e as flores estão bem aparados: que beleza é o seu jardim.

Querido Daniel, seus pequenos sapatinhos estranhos à areia, à terra, à sujeira. Sua mãe que o protege, que o proíbe de brincar na sujeira. Seus sete aninhos espostos em porta-retratos expalhados por toda a casa, seu pai orgulhoso que ergue você no colo na fotografia da sala de visitas.

Passaram-se vinte e três anos desde esses dias e os cômodos da casa, muito limpos, não mudaram muito: suas fotografias espalhadas pela casa, sua mãe orgulhosa que limpa semanalmente os porta-retratos, seu pai orgulhoso que limpa os carrinhos de ferro que se exibem na estante de seu antigo quarto de dormir.

Seu pai e sua mãe, que esperam pelo telefonema toda sexta-feira à noite, que estão orgulhosos por você vencendo a vida na capital. Sua mãe que não contém as lágrimas quando conta repetidas vezes a história de seu filho – para as vizinhas não muito curiosas mas muito educadas para ouví-la.

O jardim está florido. Quantas vezes este mesmo jardim veio a florir desde que você foi para longe dalí? Já faz doze anos desde que tomou aquele ônibus para a capital. A faculdade de Ciências Humanas o esperava na cidade grande. Quantas promessas de telefonemas na rodoviária, no dia da despedida... promessas de visitas também.

De fato, você cumpriu todas as promessas. Desde que partiu, não houve ano que não viesse passar um tempo com sua querida mãe e seu pai, principalmente quando ele caiu doente. Seu pai que se recuperou de um AVC contou com você a seu lado mesmo quando você não podia se ausentar do trabalho e ausentou-se.

A vida nunca foi tão difícil quanto naqueles dias em que sua mãe ao telefone chorava e dizia que seu pai estava desenganado, que ele não iria resistir ao golpe do azar. Você que não dormia, de longe, cogitando perdê-lo. E viajava nos finais de semana para a casa paterna para acompanhar de perto sua convalescência.

Enfim, seu pai re recuperou. O lado direito da face paralisado não foi nada. Antes isso a um nada. Antes isso a forçar a família a sucumbir na dor de perdê-lo para sempre. Foi um setembro de muita luz, era começo de primavera depois dos três meses de inverno e de convalescência. Então você voltou para a capital. Já faz quatro anos.

Sua mãe, nos dias de hoje, tem trabalhado muito no jardim. Ontem plantou uma fileira nova de margaridas ladeando o caminho entre o portão e a entrada da casa. Nesses dias de sol, é novamente primavera no jardim, tudo está tão lindo – O jardim está sendo preparado para você que vem de visita para o doze de outubro próximo.

O jardim de pai e mãe resplandece aos cuidados de uma mão amorosa. E viceja sob o olhar jubilante do pai. Você que está tão longe e ainda tão perto dali, do jardim das brincadeiras da sua infância; longe do olhar atento da mãe que o impedia de pisar na terra, na sujeira, para não sujar os sapatinhos de couro marrom.

Hoje está formado na faculdade de Ciências Humanas. Hoje você trabalha na capital e não está sozinho, porque trabalhando compartilha um pequeno imóvel na área central da cidade. Você de menino de sete anos a um homem feito, de trinta anos, foi um passo lento na marca retilínea do tempo. Hoje você ama como amou um dia seu pai a sua mãe.

Somente um homem infeliz como eu para poder compreender a importância do jardim de sua infância, que cisma a irradiar como fogo dos músculos fortes de seu peito. A felicidade familiar que foi um presente que recebeste de Deus, fabricada a exemplo das coisas perfeitas que só Ele faz, sentado em seu trono no mundo celestial.

Não tive tua sorte. Meus pais muito persistiram em destruir um ao outro em um casamento infeliz até o dia em que em um daqueles surtos de sabedoria que atravessam a mente dos menos favorecidos deixando-os ilibados e desejantes de se separar. Com muita lucidez, com algum calor na voz, me comunicaram um dia que iam se separar.

Querido Daniel, não permita que me faça aborrecer porque este momento é seu. Eu, que a tanto tempo o admiro e acompanho de perto a felicidade familiar em torno do jardim de seu pai e sua mãe. Crescemos juntos, e fomos amigos. Quase vizinhos. Garanto que poucos amigos conseguiram interpretar o faiscar dourado em seus olhos.

Também garanto que poucos, sendo capazes de interpetrar a felicidade familiar no seu semblante, pode deduzir sua necessidade de sobreviver com vida própria – longe do espaço familiar. É que o tempo também tornou-te homem, e como tal outras necessidades surgiram em seu caminho.

O receio em poder sucitar divergências te pôs no caminho próprio teu, em uma reta paralela àquela da vida em torno do jardim, e é como se esse novo caminho não se comunicasse com o antigo. Você cresceu. E para cada pergunta curiosa, um sorriso apaziguador e um olhar singelo de sua mãe assegura-nos que corre tudo bem na capital.

Na capital, você não tem amigos. Passados tantos anos, ficou ao seu lado o André, que vem de uma família bem estruturada e provavelmente você acredita que é só ele para perceber o faiscar nos teus olhos ao lembrar-se do jardim dourado de pai e mãe. Mas na verdade somos ele, eu, e você para compreendermos bem a ordem das coisas.

Talvez eu compreendesse mais de você do que o André, mas isso não tem importância. Eu rondo seu lar do interior como um animal bom e manso. Como um gato, consigo me transportar através do muro baixo até os brotos de margaridas que terão esse ano um florescer generoso. Quando sou surpreendido por alguém, cumprimento com a cabeça.

Sua vida na capital, ao contrário do que possa imaginar, não é por todos desconhecida. O Meneval, com quem estudou no ginásio, mora na capital e lembra-se de contar aos outros o que acontece com você. O homem, que gosta de intrometer-se em assuntos alheios, por vezes trata você como um desafeto. Inventa histórias, eu sei, já ouvi.

Ainda assim, procurando interpretar do Meneval aquilo que ele mesmo não compreende, montei uma visão mais apurada de você. Talvez isso seja novidade, mas sempre gostei de sua pessoa, e portanto sempre vi sossegado o delicado apego a sua família. É algo que, por infortúnio, não tive para mim. Mas isso não importa.

Este dia de hoje é para você. O sol viaja alto no céu para dizer-me que é hora do almoço, já é meio-dia. Você na capital se prepara para o almoço, e eu nesse interiorzão ouço o bater do sino da igreja marcando o meio-dia enquanto me preparo para a minha refeição. A caminho de um restaurante, não vejo muita gente na rua.

Trabalhando na biblioteca, lembro que a quilômetros daqui você se ocupa das aulas em alguma escola particular – talvez um lugar sofisticado onde outras pessoas como você entendem o que significa o amor ao recôndito filial no colo da mãe e nos braços carinhosos do pai. Desculpe se me repito. Mas você nasceu para isso.

Por Deus que gostaria de estar lá, em uma primeira aula, só para ouvir você falar para os novos alunos que vinha de uma família que o amava. À sua maneira, você diria ser o resultado de uma união familiar de sucesso. Diria que nunca ouvira uma palavra de pai contra mãe e, afetadamente, daria uma voltinha caindo sentado na cadeira de professor.

Não sei qual o frio que faz na cidade grande, dizem que faz mais do que aqui. As pessoas que vêm do frio são mais duras, e podem não compreendê-lo muito bem. Eu não venho do frio. Venho da terra, da sujeira de jardim, de onde veio você também. Gosto de você demasiado sem esperar algo em troca e acredito que lhe entendo.

Um dia, quiçá, se o futuro nos permitir, vou declarar-me a você como um amigo. Tenho certeza de que se lembra daquelas infortunadas aulas de educação física na adolescência em que às vezes zombavam de você, e lembra-se ainda de mim que o puxava para o meu grupo, escapando você dos gracejos perversos dos outros alunos.

Pois que o jardim ensolarado, bem-cuidado que flori – vingue sempre e viva para afrontar o tempo, sobrevivendo feliz e sendo nossa testemunha. Todo o amor do mundo se derrame através dele, reunindo o calor da primavera em forma de cheiros e de cores mil. Vejo ali simbolizada a razão da alegria do seu mundo.

O querido Daniel seja abençoado – abre-se por ti um broto de margarida todos os dias. As flores abrem-se como se contassem as horas que faltam para você vir. Que beleza de histórias envolvem este lar, e que beleza é seu jardim. Os brinquedos estão no quarto de infância, e os velhos porta-retratos estão expostos em salas por onde passam as visitas.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 27/09/2015
Reeditado em 22/10/2018
Código do texto: T5396487
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