METEMPSICOSE

O pai fora alvejado pelas costas quando estava numa mesa de carteado do Clube Casino. Essa imagem vinda da infância, reconstituída através dos relatos que ouvira, ao invés de inspirar desejo de vingança, fazia crer a Liupério que doravante a atenção materna lhe seria concedida de forma exclusiva.

No entanto, o ambicionado afeto sempre lhe pareceu escasso. Ah! como ele desejou para si os cuidados que sua mãe dispensava ao Fetiche, um formoso cavalo baio!

Na vida adulta, como símbolos de virilidade e poder, Liupério selecionou o encanto por cavalos e o apego por armas de fogo. O enlevo fora transmitido pelo garbo de Fetiche; já o aferro estaria a configurar o bastão utilizado por Édipo para vitimar Laio, marido de Jocasta, no parricídio mais emblemático da mitologia.

Houve um momento na vida de Liupério em que a imagem não bastava. Era necessário apalpar, materializar a fixação. Por isso, ele se viu no interior da loja de armas. Após examinar os artefatos, resolveu comprar uma pistola de última geração e uma carabina seccionada que permitia rápida montagem.

Em casa, cercado por estatuetas que representavam equinos, ele olhava e polia demoradamente suas aquisições. Depois, adormecia. Nos sonhos, surgia um espectro montado em um cavalo.

No amparo doméstico, Liupério também se dedicava ao estudo da metempsicose. Colecionava livros sobre a transmigração das almas. Houvesse outra vida, desejava retornar como sendo um cavalo formoso, assim como Fetiche, que tivera toda atenção de sua mãe.

Uma noite qualquer, em frente ao semblante materno que se encontrava preservado no enorme pôster junto à parede da sala, Liupério acomodou-se no sofá, carabina ao lado, cigarro aceso e se pôs a refletir em meio a fumaça que o envolvia. Entregue ao acaso, visitou o templo da deusa Psiquê. Errante, cercado por paixões e desgraças que voavam redimidas nas asas da borboleta, ele se viu entregue a uma súbita e involuntária resolução.

Enquanto o destino misturava as cartas de um velho baralho, Liupério incursionou ainda mais pelo território das sombras. Roupa escura, arma no malote, ele rumou em direção ao prédio devoluto que lhe surgia à mente. Era um sobrado localizado próximo a uma esquina onde havia pouco movimento. Calmeiro, justapôs o rifle e o especou na amurada do jardim a espera indiscriminada de alguém.

A execução fora rápida. Ecoaram dois estampidos. Estava seguro e energético.

Desperto da eletrizante aventura, ele beijou o pôster da sala. Por um momento, as feições maternas nele retratadas lhe pareceram cenhosas. Liupério ignorou o detalhe. Sentia-se forte como um corcel indômito. Realizado, experimentou, dessa vez, um sono contínuo. No sonho, tornou a ver a misteriosa criatura montada em um fogoso cavalo. Em realidade, o cavaleiro era invisível. Apenas chapéu e capa lhe emprestavam a forma.

Em noites posteriores, a mesma cena. Liupério refletia acomodado no sofá em frente ao retrato materno até ser confiado a um impulso repentino, que o forçava a continuar sua trajetória através do imenso oceano das sombras. De modo invariável, as vítimas eram do sexo masculino.

No enorme tablado da atemorização, Liupério encontrava policiais aturdidos que nada dilucidavam. A progressão dos delitos aparvalhava. O caminhar hesitante, olhares desconfiados e o semblante grave das pessoas acresciam-se ao espanto pelo não identificar do facínora.

Por todos os lados, casas protegidas por ferros, guardas e cães. Embora isso, as investidas de Liupério eram ditadas por nuances cinematográficas. Na verdade, várias imagens se desenrolavam na sua mente. Certa vez, um jovem fora alcançado por um disparo feito ao simples delinear da silhueta em uma janela iluminada. Coberturas de edifícios em construção também eram utilizadas para o envio de mensagens incandescentes, que de modo certeiro, varavam o passeio público.

Durante algum tempo, a cevar uma desforra ontológica sob a cumplicidade das sombras, Liupério exibiu seu naipe em diversos cenários mentalmente arranjados.

Noite dessas, enquanto o destino misturava as cartas de um velho baralho, em local ermo, adequado ao trato das emoções, ele avistou o traje animado que por certo lhe caía sob medida. A névoa despertava narrativas fantásticas. Excitado, deixou-se levar pelo coração ligeiro e pelo suor que inundava o corpo. A ocasião era imperdível, o alvo estava à sua frente.

O que aconteceu posteriormente, impulsionado pela roda das circunstâncias, foi dirigido por adrenalina em estado puro. Ao alvejar o espectro e usar seu “pinto de ferro” pela última vez, Liupério se libertou do fantasma que perturbava sua intimidade.

Ao amanhecer, acalentado pelo silêncio, gravado no pôster junto a parede da sala, o semblante de sua mãe já não parecia tenso. No sofá em frente à moldura, um belo cavalo estava entregue a um sono profundo.