902-VOLUNTÁRIOS PARA A REVOLUÇÃO - Politico

VOLUNTÁRIOS PARA A REVOLUÇÃO

A multidão enchia a imensa Plaza ocupando todo o espaço, espremendo-se nos vãos das portas e entrando no chafariz refrescante na manhã já quente de um dia de verão. Muitas pessoas, homens na maioria, equilibravam-se precariamente nas marquises, com o risco de desabamento.

O espírito religioso reunia aquele amálgama de indivíduos moradores da capital e de residentes do interior. A festa do padroeiro do país estava sendo celebrada naquele ano como ocasião de agradecimento pela tomada do poder pelos revolucionários, há quase um ano, quando El Gran Papá fora deposto e fuzilado, juntamente com a família e um milhar de pessoas ligadas ao poder corrupto do ditador.

Nesse período de pouco menos de doze meses La Revolucion havia tomado medidas que agradavam o povo. Um período inicial em que as transformações eram apresentadas como “para melhorar a situação de todo mundo, principalmente dos campesinos”.

A Igreja Católica dava pleno apoio aos revolucionários, embora condenasse formalmente os fuzilamentos sumários. Por isso dera também franco apoio à convocação para que todos os manapenhos viessem à capital, a fim de orarem pelo estabelecimento de uma ordem justiceira que era o ideal pregado pelos novos mandantes. Não só os padres de todas as paróquias do interior ajudaram nesta convocação, como muitos veículos das forças revolucionárias com alto-falantes, também conclamavam a população.

“Vamos dar uma demonstração de fé e confiança aos revolucionários”, diziam os padres, dos púlpitos e dos altares.

“Venham todos mostrar patriotismo e apoio as forças da revolução, que irá acabar com os ricos e opressores e distribuir terras e a riqueza nacional entre todos”, anunciavam os alto-falantes dos velhos caminhões e carros por todas as cidades e vilas do pequeno país.

As gentes correram à capital, vindas de todas as regiões do país, naquele movimentado três de dezembro, o dia do padroeiro, São Francisco Xavier. Os negros, a grande maioria da população, usavam seus trajes vistosos, coloridos, cujos tons sobressaiam na multidão. Alguns grupos organizados de musica e de dança regionais estavam ali, mas quase não podiam fazer suas demonstrações, devido ao ajuntamento popular. Também a catedral estava abarrotada de fiéis que haviam madrugado a fim de conseguir um lugar, ainda que em pé, para assistir a primeira missa, celebrada às 10 horas.

Nem todos estavam ali para rezar. Ao lado da catedral, defronte ao edifício de três andares da prefeitura, postava-se um grupo de revolucionários, usando a vestimenta própria dos guerrilleros, fortemente armados com fuzis à tiracolo e revólveres nas cinturas. Dois caminhões e um carro novo, mostrando o emblema da revolução cercavam uma viela de acesso à praça.

A multidão agitava-se em ondas como as águas de um mar revolto. Todos aguardavam a palavra do líder, El Gran Guión que sempre durava horas, fazia muitas promessas e ameaçava os inimigos da revolução, dentro e fora do país.

Naquela manhã, todavia, foi breve. Após cinco minutos de discurso, cedeu a palavra ao seu ajudante direto, que conclamou a todos os homens e mulheres com menos de 30 anos, a se reunirem defronte ao palanque dos chefes guerrilheiros.

Muitos se ajuntaram de boa vontade. Outros, meio que desconfiados, procuraram sair da praça, mas toparam com militares postados a cada rua, beco ou viela que desembocava na praça, impedindo a saída de quem quer que fosse. A multidão estava confinada naquele espaço.

— Amigos! A Revolução precisa de voluntários. Precisamos de defensores, professores e gente nova para ajudar a atingir nossas metas. – disse o chefe.

Os guerrilheiros foram organizando a massa de homes e mulheres, voluntários ou não, em quatro filas defronte ao palanque. Não foi difícil, pois todos acreditavam no arrazoado do chefe da revolução.

Mesmo aqueles que tentaram, no primeiro momento, uma evasão e tinham sido impedidos, acabaram por adiantar-se e fizeram parte das fileiras.

Entrementes, três guerrilheiros abriram um espaço e chegaram arrastando um jovem negro, alto e magro, que berrava a pleno pulmões, mesmo após receber uma coronhada na boca, que sangrava.

—No voy! No voy! Não quero morrer!

Muitos o reconheceram: era Pablito Manso, um habitante da capital, conhecido por sua loucura pacífica e seu amor pelos animais. Vivia da caridade dos que transitavam pela Calle Principal.

Os berros chegaram até os ouvidos de Padre Cerromonte, que à porta da catedral, observa os acontecimentos. “Estão recrutando os jovens para seus propósitos”, pensou. Sabia que aquela convocação iria acabar em confusão que já se iniciava.

Com as mãos amarradas atrás do corpo, Pablito foi jogado à frente do palanque. Caiu de joelhos e continuou a gritar “no voy, no voy” como se fosse um disco defeituoso.

El Gran Guión pensou “este negro será um bom exemplo para quem pensa que pode nos escapar” e deu uma ordem só audível aos três guerrilheiros que haviam trazido Pablito.

Padre Cerromonte desceu as escadas da catedral, abrindo caminho entre a multidão, no intuito de explicar às autoridades de que tratava de um louco, que não ajudaria em nada à revolução.

Não deu tempo. Como numa câmara lenta, viu os três soldados apontarem seus fuzis para o jovem ajoelhado e dispararem.

Quando chegou ao local, o padre só viu uma massa informe do negro louco e das roupas totalmente cobertos de sangue.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 18 de junho de 2015

Conto # 902 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/11/2015
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