o menino calado

No almoço de domingo o menino aproveita o sossego da sesta e se põe à frente da avó que embala a cadeira de balanço. Fica entretido com os caminhos que vê sair dos olhos, dos cantos da boca, dos braços dela. Tenta imaginar como cada um deles foi feito, como se fiou esse bordado em plena pele.

Ao abrir os olhos, ela se depara com o neto assanhado, sujo, cheirando a sol. O colo é convidativo e os dois se unem além do presente. A cadeira balança.

- Vó, o que é isso que sai dos teus olhos assim parecendo cobra? Da boca, nos braços...

- É a vida.

- E como foi que ficou assim? Amassado? – tentava esticar a pele da avó com as mãos.

- Um dia eu estava caminhando por essa estrada que vai dar na casa da sua tia e três cavalos me perseguiram. Tentei fugir correndo o máximo que pude, mas a estrada não acabava, eu não conseguia encontrar ninguém e o jeito era parar. Então me deitei no chão e deixei que eles trotassem.

- Doeu muito?

- Só no início.

- Com o vovô também foi assim?

- Não! Com seu avô foi muito pior. Seis cavalos o perseguiram à noite. Mais a chuva que caiu. Os cavalos me perseguiram durante o dia.

- Seu cabelo tão pouquinho... branco...

- A mesma chuva que pegou seu avô no dia dos cavalos, me pegou um pouco depois e levou meus fios negros pro rio em troca destes poucos brancos.

- Foi dessa chuva que vovô morreu?

- Não. Seu avô morreu de saudade.

- E como se morre de saudade?

- Basta existir. Saber brincar quando pequeno. Assim... que nem você.

- E onde é esse rio?

- Tá vendo aquele ponto que você não consegue enxegar?

- Tô.

- Pois é ali.

Silêncio entre os dois. Avó e neto procuram no horizonte a mesma resposta.

- Vó, os cavalos vão correr atrás de mim também?

- Vão sim, meu filho.

- E a chuva também vai me pegar?

- Vai.

- E quando vai ser?

- Logo, meu filho. Logo.

A cadeira balança. O menino deixou o colo da avó e seguiu de cabeça baixa para o quintal. Concentrado, ele tirava a diferença entre as idades e começava a contagem regressiva. Acertaria as contas com os cavalos e cobraria os fios negros de sua avó à chuva que também levaria os seus.