910-EM MÁ COMPANHIA- Reminiscências do autor

EM MÁ COMPANHIA

Caixas de marimbondos e canudinhos de papel.

À saída da escola, [Grupo Escolar Dr. Arruda Sá] Carlinhos e Toninho iam juntos, conversando. Carlinhos era magro, moreno e alto, enquanto Toninho era pequeno, miúdo, loiríssimo. Faziam uma dupla bem discrepante. Carlinhos estava no segundo ano do primário e Toniquinho, no terceiro ano.

Nada tinham em comum a não ser o súbito interesse de Toninho pelos canudinhos que o colega assoprava constantemente, através do pequeno tubo de bambu, atingindo colegas na hora do recreio.

—Faz um canudo igual o seu prá mim. — Pediu Toninho.

—É, bebé, mamá na vaca cê num qué? — respondeu Carlinhos, com a pergunta debochante que era uma negativa total.

— Então me deixa assoprar um canudinho?

— Só um, que é difícil de fazer.

Passou o canudo de bambu, pequena peça de uns vinte centímetros, com diâmetro do tamanho de uma moeda de cem-réis, aberta nas duas extremidades. E introduziu um canudinho de papel, pequeno cone ajustado ao tamanho do interior do canudo.

Toninho ajeitou o bambu nos lábios, encheu os pulmões de ar e assoprou com força, na direção da lâmpada no alto de um poste. Não acertou.

— Inda bem que ocê errou. Se pega. quebrava a lâmpada. — Uma bazófia, pois Carlinhos queria impressionar o coleguinha e ao mesmo tempo valorizar o seu brinquedo.

Devolvendo o canudo de bambu a Carlinhos, Toninho insistiu:

— Que bacana. Faz um prá mim, faz?

Carlinhos pensava rápido, típico de garotos arteiros e atrevidos.

— Só se você fizer 50 canudinhos de papel.

— Combinado. Amanhã trago os canudinhos.

— Têm de ser deste tamanho, ó. — e mostrou um canudinho mal feito, um pequeno cone de papel, que já estava se desmanchado.

É interessante como todas as criações e invenções, das mais simples às mais complicadas, tanto podem servir para o bem como para o mal. O canudo de bambu, com os canudinhos, era uma brincadeira simples: assoprar um canudinho era uma brincadeira inocente, mas que nas mãos, ou melhor, na boca de Carlinhos, transformava-se em mais um instrumento para suas diabruras de menino de escola.

O canudo se transformava em uma mini-zarabatana que disparava projéteis que podiam machucar uma pessoa, se atingisse o rosto, os olhos, por exemplo.

— Então ta prometido. Cê faz o canudo de bambu que lhe trago 5O canudinhos de papel. Amanhã. Sem falta.

Enquanto conversavam, Toninho procurando acompanhar, com seus passinhos, as passadas largas de Carlinhos, chegaram ao Jardim Novo.

Cheio de palmeiras imperiais, uma velha e copada figueira, um pé de jequitibá gigante, gramados gostosos para jogar bola e largas alamedas de chão batido (ótimas para jogar bolinhas de gude) ocupava um grande quarteirão e era o paraíso da meninada da vizinhança.

As residências ao redor da praça eram de gente rica, e havia até um sobradinho, onde morava a diretora do Grupo Escolar Dr. Noraldino de Lima, que, diziam, era uma brabeza, chamada dona Conceição, mas Carlinhos e Toninho não sabiam. O que Carlinhos sabia é que no alpendre do sobradinho havia uma caixa de marimbondos de bom tamanho, alvo fácil de seus canudinhos.

Os dois garotos já estavam a ponto de se separarem quando Carlinhos disse:

— Vem cá, vou te mostrar uma coisa.

Toninho acompanhou o colega até defronte o palacete. Carlinhos pegou a mini-zarabatana, colocou um canudinho dentro e assoprou com força. O projétil atingiu em cheio a caixa de marimbondos que imediatamente começaram a esvoaçar. Carlinhos apertou a campainha da casa e gritou:

— CORRE!

Os dois saíram em carreira desabalada, rumo às árvores do jardim. No alpendre apareceu dona Conceição, para atender a campainha. Foi atacada pelos marimbondos zangados e correu prá dentro da casa, não sem antes ver os dois garotos correndo pelo jardim e escondendo-se detrás das árvores.

Pestinhas! Pelo uniforme, são do grupo Dr. Arruda. Amanhã eles me pagam, pensou a enfezada senhora.

Na corrida, Carlinhos deixou cair ainda na calçada o canudo de bambu. Tal esquecimento iria ser a peça chave dos apertos pelos quais ambos os garotos iriam passar.

No dia seguinte, Toninho chegou cinco minutos antes das sete e meia, hora em que tocava o sino para a entrada das aulas.. Queria trocar com Carlinhos, antes de começar a aula, os 50 canudinhos que fizera para trocar pelo canudo de bambu, conforme combinado.

Assim que passou pelo portão, sentiu a mão no seu ombro, e uma voz:

— Venha comigo, seu moleque. — Era seu Geraldo, porteiro do grupo, bedel e vigia do recreio.

Ato contínuo foi levado até a diretoria, a mão cada vez mais apertada no seu ombro.

Foi empurrado para a sala, e deparou-se com três mulheres, sentadas em semi-circulo, todas sisudas e com caras de que não estavam para brincadeiras: dona Conceição, cujo rosto mostrava os inchaços das picadas dos marimbondos; dona Etelvina, a diretora de seu grupo, e dona Marocas, sua professora.

— Este foi um deles! — acusou dona Conceição.

Toninho tremia que nem varas verdes.

— Toninho, que foi que você fez, menino? — Dona Marocas parecia constrangida em perguntar-lhe. — Você é tão comportado na classe, agora deu para fazer diabruras na rua?

Não era uma pergunta, e sim uma triste constatação. Não tinha como o garoto responder. Mas em seguida veio a pergunta direta:

— Quem é que estava com você? Quem é o dono deste canudo de bambu?

Toninho estava olhando para a peça e lembrando-se da cena do dia anterior. Não tinha vontade nenhuma de falar que era de Carlinhos. O silêncio opressor foi como que forçando a delação.

— É... é... — gaguejava, quando a porta foi aberta repentinamente e seu Geraldo empurrou Carlinhos para dentro.

— É ele! — falou alto dona Conceição.

Carlinhos ficou de pé, ao lado de Toninho, que tentava descobrir como tinham sido descobertos.

Foram infindáveis minutos aqueles, quando Dona Marocas, sua professora, e Dona Etelvina, a diretora do seu Grupo, tentavam se desculpar com Dona Conceição, que não tirava dos garotos o seu olhar azedo.

— Espero que eles sejam punidos com rigor! — ela disse, levantando-se e saindo da sala, sem se despedir de ninguém.

Dona Etelvina, também com a cara séria, disse:

— Marocas, você leve o Antônio e fale com ele, aplique o castigo que convier. Vou levar o Carlos para sua classe e pedir a Dona Araci que faça o mesmo.

Dona Marocas tomou Toninho pela mão e levou-o para outra sala, onde não havia ninguém.

— Sente-se ai, Antônio. E me explica como foi que você fez essa travessura?

Toninho, gaguejando sempre, vermelho de vergonha como um camarão, contou tudo.

E terminou dizendo que havia feito os 50 canudinhos para trocar com Carlinhos.

— Agora, não quero mais. A senhora pode ficar com eles. — e entregou para dona Marocas a caixinha de papelão onde havia colocado cuidadosamente os canudinhos de papel.

— Pois bem, vejo que você entendeu que deve evitar os colegas que fazem essas travessuras. Não vou castigar você por isso. Mas preste atenção, hein?

E deu-lhe um suave beijo no rosto. Toninho não resistiu: caiu no choro.

<><>

Ao sair da escola, ás onze horas, como de costume, era esperado por Carlinhos, que lhe mostrou um canudo de bambu, de um verde brilhante, uma tentação.

— Num quero mais o canudo. Pode ficar com ele.

E saiu correndo na direção de sua casa, por uma rua que não passava pelo Jardim Novo.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 23 de agosto de 2015

Conto # 911 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Leitor: mande-me seu endereço postal para receber grátis um volume da Coleção Milistórias("Minha Doce Vampira"). Promoção Livro Presente de 1.OOO HISTÓRIAS.

argobbo@yahoo.com.br

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/01/2016
Código do texto: T5503448
Classificação de conteúdo: seguro