Intimidades com Lobos

Fiquei à espreita de um sinal, escondido na madrugada, iluminada de prata e de silêncio. Só o latir de um cão cortava a espaços o assombrado sossego da noite. Era um cão, tenho a certeza, embora o uivo de um lobo condissesse mais exactamente com a lua cheia, que iniciava o declínio sobre as montanhas escurecidas.

Estou seguro de que era um cão, mas eu alterei-lhe o som gutural e afianço que ouvi pavorosamente perto, quase que a roçar-me as pernas, um uivo lastimoso de animal ferido e desprezado.

— Não tens receio de mim? — Questionou-me o bicho com olhar pesaroso e moribundo. Estou esfomeado, posso atirar-me a ti, está-me no sangue a violência feroz.

Não! Tu não me receias. És tão selvático quanto eu. E também um escorraçado da tua alcateia, como eu o fui da minha, perdido o meu estatuto de patriarca, já só sou uma carcaça moribunda e inútil, a servir em breve de repasto para os abutres. Esses ao menos dão-nos o merecido valor. Aproveitam tudo de nós e se nos deixam os ossos é para que possamos ser lembrados por quem passe.

Ris-te? É porque és mais novo e a tua hora ainda não chegou. Vais a caminho mas hesitas porque não te sentes preparado. Aconteceu o mesmo comigo, sossega. Desviei-me por trilhos sinuosos, fugindo e escondendo-me nas urzes frondosas e compactas da montanha agreste, tentando retardar a evidência da minha hora. Afianço-te que ela chega sempre. A nossa hora está agarrada a nós. É uma lapa que não descola. Uma carraça que te vai sugando o sangue, engordando ela e ressequindo-te a ti. Não tens nada que recear. Eu tive receios enquanto não estava preparado. Como vês é simples: deixa-te levar, nada mais, só isso. A natureza fará o resto.

Moisés Salgado