Capítulo 3 – Outras vidas

Hã? Onde é que eu estou? O que é isso rodando na minha frente? O que? Que diabos é isso? Marcos tinha finalmente acordado. Sua cabeça girava, mas o que tinha visto antes era o seu ventilador de teto, que tentava refrescar um pouco do ambiente. Já o “diabo” era seu gato, que dormia em cima da cama, junto ao seu rosto. Por sorte, o gato não levou um soco, sortudo era ele.

Marcos tinha bebido muito na noite anterior, muito mesmo. Começou com cerveja, depois uísque, vodka, e um Red-Bull, aí sim, foi que tudo veio a baixo. Não fazia a mínima idéia de como voltara pra casa. Só se lembra o barulho de muitos passos, e de tudo parecer escuro. E agora já estava em casa, e eram quase duas da tarde.

Ao tempo que a dor de cabeça da ressaca ia aumentando, latejando e um leve desconforto subiu-lhe pelo estômago, sua sorte foi conseguir se livrar do gato e chegar ao banheiro a tempo de ver tudo que havia ingerido na ultima noite descendo descarga a baixo. Depois de botar tudo o que conseguiu para fora, foi que começou a lembrar das coisas. Voltara com Lucas e um pessoal, que carregou, e o deixou dentro de casa. Mas ainda não lembrava das ultimas horas dentro a boate. Só se lembrava do porque de tanta bebida. Estava desgostoso com a vida, depois que Daiane se foi, apenas há duas semanas. Empurrado pelos amigos, que viam sua necessidade de se divertir, foi à festa, mas lá começou com velhas lembranças onde os dois dançavam por aquele salão. E isso para ele era o fim. Se largou no trago e deixou que a noite o cuidasse.

A história dos dois sempre foi um problema. Ele até era um bom garoto, mas os pais dela nunca acharam isso. Ele sempre fora meio desligado da vida, não se importava com a maioria das coisas importantes. Era diferente de Lucas, pois era mais espontâneo e era mais popular entre o pessoal da cidade, já que gostava muito de sair a noite, principalmente com ela. Ela, uma garota mais centrada no real, sempre ia bem no colégio, tinhas suas amigas e amigos, saía as vezes, sozinha nunca, pois os pais não deixavam. O romance dos dois aconteceu muito por acaso, se conheceram em um assalto em plena rua, onde dois homens estavam tentando tirar a bolsa de uma senhora. Estava atravessando a rua, próximo ao colégio, quando viu a cena. Daiane vinha logo atrás da senhora e quando viu a cena, não se agüentou. Sempre teve um respeito extremo pelos seus avós, admirava-os por terem vivido tanto tempo um ao lado do outro. Por isso pulou em cima no primeiro homem e, literalmente, sentou a porrada. Enquanto isso o outro ainda lutava para arrancar a bolsa da senhora, que por acaso não estava nem um pouco afim de soltar. Foi quando Marcos viu um terceiro se aproximar por trás de toda a cena, e o viu tirar uma pequena faca do bolso, foi quando, de um pulo, atravessou cinco metros, e acertou na mão do desgraçado com um chute. A faca voou caindo em cima de um carro que passava pela rua, que acelerou e logo estava longe, sem entender o que tinha acontecido. Ao fim, Daiane e Marcos encheram os três de socos e pontapés já com dois policiais no meio, deixando-os no chão, quase inconscientes, ainda ajudados pela senhora, que também batia com sua bolsa freneticamente. Após a chegada do camburão e tudo estar bem resolvido, levaram a senhora até em casa e aí se iniciou uma grande amizade entre os três. Mas foi isso que levou os dois a se conhecerem e namorarem, visitando e ajudando a senhora sempre que podiam. Almoçavam, jantavam, namoravam, conversavam, jogavam cartas, mas sempre a baixo de muita risada. Dona Almira era uma senhora sensacional. Adorava os jovens, e os ajudava sempre que podia. Acolhia os dois, ou um deles, se estivessem brigados. E aconselhava, contando uma das histórias de seu tempo. Era praticamente a madrinha do namoro deles.

Quando se separam, ela foi a primeira a saber, pois estranhou eles não aparecerem em sua casa na quinta à tardinha, como sempre, e nem mesmo avisar que não viriam. Pressentiu que algo de ruim havia acontecido. No sábado seguinte, também não apareceram. Que teria acontecido?

Só na semana seguinte, que Marcos deu as caras. Apareceu na terça à noite, pálido, com os olhos inchados e com jeito de que não se importava com seu estado de bagaço. Aquela noite se estendeu até a as primeira horas da manhã, com conversas e choros, este por parte de Marcos, claro. Daiane o traíra com outro, ou foi o que ela tentou dizer, mas não ouviu nem metade das palavras que a outra, chorando aos berros, tentava lhe explicar. O que queria era sumir naquele momento, e foi o que fez. Desligou celular e não atendia ao telefone de casa. Ainda bem que morava sozinho, não tinha ninguém que o fizesse sair do quarto e pegar naquele telefone. Só saiu após uns dois dias, pois sofria de fome e não podia perder mais aulas da faculdade.

Dona Almira, ao ouvir toda a história se comoveu também, porém o advertiu que deveria falar com Daiane, mas ele não estava com nenhuma vontade disso. Ela também pediu que ficasse por ali, com ela, coisa que ele também não queria, já que a outra o procuraria ali, certamente.

Do outro lado da cidade, Daiane também chorava, deitada em sua cama, e seus pais, do lado de fora, na sala, nada entendiam, nem sua irmã, com quem tinha mais amizade. Daiane se martirizava por ter feito aquela idiotice. Após a notícia de que seus pais estavam se mudando para o Rio, queria testar se seu amor por Marcos, que acabou provando ser mesmo, porém não de maneira benéfica. Ele não deu tempo a ela para se explicar, nem precisava, ele vira tudo. Ao final, ela estragou tudo, e agora ainda tinha que viajar. Tinha feito coisa errada e não conseguia se desculpar por isso. Sofria.

Entra em cena o anjo que era Dona Almira. Após ouvir a história de Marcos, ligou para Daiane e passou algumas horas ouvindo o outro lado do ocorrido. Após muitas tentativas infrutíferas, conseguiu botar os dois frente a frente, e aquela choradeira rolou solta até que Marcos a perdoou, mas a viagem era no dia seguinte e a noite fora curta demais para os dois.

O dia nasceu escuro e cinzento, com uma densa neblina envolvendo as ruas. O sol não deu as caras. Tampouco o vento, que estava sempre presente, apareceu. Marcos não tinha condições psicológicas suficientes para ir ao aeroporto, nem Daiane queria que fosse, pois ela também não tinha. A despedida dos dois ocorreu com mais lágrimas, que pareciam não se acabar mais. Ela jurou que voltava em alguns meses. Ele jurou que assim que terminasse a faculdade iria atrás dela. Assim ficou, assim terminou.

Não se encontrariam tão cedo. Marcos sabia disso, e, deitado em sua cama, após ter aliviado o enjôo com remédio, pensava em quando teria Daiane outra vez em seus braços.