TRISTÃO

Tristão ocupava influente cargo público. Possuía vida privilegiada. Além de residência confortável e remuneração condigna, sempre teve acesso a alimentos saudáveis e plano de saúde completo.

Não só porque a morte, no dizer de Freud, era elemento estranho ao inconsciente, mas também em razão do seguro fluir da existência, Tristão pressentia-se imortal.

No entanto, o presságio que entendia a vida como sendo uma generosa oferta da eternidade, em específico, receberia um golpe fatal. Vários médicos atestaram que uma moléstia silenciosa revelou-se em estado avançado e irreversível. Por isso, a Tristão restariam não mais do que cento e oitenta dias por serem vividos.

O abalo despertou a cólera do sentenciado. Inúmeras pessoas que sobreviviam à mingua do necessário, e que eram amiúde abordadas para exibir identificação e mostrar o conteúdo de seus embrulhos, poderiam, contudo, percorrer um longo caminho, enquanto ele, cidadão de prestígio, imune a esses embaraços, estava sendo notificado a morrer em um prazo exíguo e determinado!

Essa ira foi sendo, aos poucos, permutada por algumas reflexões: O que haveria depois da morte? Sobraria algum tipo de consciência, ou tudo se limitaria à decomposição da matéria? Tristão endereçava essas questões aos familiares, amigos e religiosos, mas as respostas não eram melhores do que o sussurro da brisa, o pipilar das aves, o latido do cão e o miado do gato.

Oportunidade e outra, chegavam preleções sobre energia vital. Por consequência, Tristão se convencia de que no seu âmago, insubmisso às leis que regiam o tempo, havia um componente cósmico. Esse elemento, por ocasião da falência dos órgãos, se desprenderia vitalizado da matéria.

Noutros instantes, Tristão refletia sobre a possibilidade do corpo soterrado aprisionar o intelecto. Mas, ao recordar Epicuro, logo ficava expresso que a morte era a privação dos sentidos. Até o bem e o mal tinham existência confinada às sensações. Dessa forma, o pânico era inconsistente. A angústia, ou qualquer sensibilidade, não ultrapassariam o ponto final.

Entretanto, a moderação vinda do filósofo, que reduzia a morte a ausência de tudo, não resolvia por completo a inquietude. Essa ideia cerceava a expectativa de ultravida que Tristão passou a cultivar. O destino ligado a uma perda absoluta, parecia injusto. Vivências não poderiam incursionar pelo território do nada, seria impossível refazer caminhos, preservar lembranças.

Meio aos questionamentos, Tristão percebeu que fora educado para existir infinitamente. Esse trato sonegara o sentido da vida. Coisas importantes, de modo usual, eram postergadas, mesmo que a felicidade fosse composta pela brevidade e o destino legasse a todos um absoluto esquecimento.

Ao avaliar o que restava, Tristão lembrou Aristóteles, para quem o tempo, em sequência de agoras, não possuía volume, mas qualidade. E assim, entendeu que poderia ser vitimado de modo fortuito em segundos, ou, na melhor hipótese, receber a dádiva de seis “longos” e bem vividos meses, intervalo em que poderia experimentar prazeres que sempre foram adiados.

Vez e outra, Tristão simplificava tudo a perda da consciência e a um gradativo e natural retorno ao pó, elemento que não desapareceria enquanto a Terra existisse. No curso largo da sua imaginação, também se iam cinzas disseminadas ao vento.

Contudo, não havia uma resposta categórica. Enquanto a ciência não descobrisse o elixir da vida, o inevitável, a qualquer momento, mostraria sua face, seja aos ricos ou aos pobres de espírito.

Por último, Tristão estava convicto de que os elementos mágicos seriam insuficientes para reverter a situação. Os que arrostaram o decreto final por tais meios, culminaram por dividir a mesma sorte. Alquimistas chineses, por exemplo, ao recomendarem doses de mercúrio ao imperador Qin Shi Huang, na tentativa de conceder-lhe a vida eterna, culminaram por envenená-lo.

O passado também evocava exemplar resignação. Gilgamesk, rei de Uruk, na célebre epopeia dos sumérios (2.000- A.C), mostrou ser capaz de vencer qualquer batalha. A certeza da invencibilidade trouxe o desejo de derrotar a morte. Munido desse propósito, o herói se foi pelas distâncias do mundo. Enfrentou e suplantou feras, monstros, seres híbridos e as mais fantásticas adversidades. Embora a bravura e o heroísmo, Gilgamesh retornou humilde e convicto de que era preciso aceitar o imperativo da morte. Em síntese, era preciso aprender a morrer.

Ao deter-se nessas lições, Tristão intuiu o ser humano como um errante submetido à dureza do nascimento e da morte. Para abrandar tudo isso, existia a esperança no ressurgimento, ou o abrigo silencioso da natureza.

Conjecturas à parte, era preciso viver a brevidade. Átomos do passado, presente e futuro estavam unidos à molécula da instantaneidade. E mesmo após a inevitável passagem, haveria possibilidade de vagar furtivamente na memória dos que foram próximos. Além disso, cromossomos imperecíveis estariam a olhar o longínquo futuro. Outros sentidos, outros olhos descortinariam paisagens inéditas, tendo algo em comum no curso dos tempos.

Na noite em que expirou o prazo de validade, em algum lugar deste mundo imperecível de mais de treze bilhões de anos, Tristão, minúscula partícula da natureza, acomodou-se no gigantesco útero universal. Um sono reparador se dedicava a consumir suas preocupações e conjecturas.

Por cá, as manhãs o encontraram anacrônico e desatento, cada vez mais vago, distante

E assim, incerto e distante, Tristão ficou para sempre.