NÃO FALHARÁS

Não dorme há três semanas. O momento de ir para a cama é um martírio. Sente-se como um boi caminhando para o matadouro. É um boi passivo e decidido a cumprir seu destino. Sair da cama pela manhã não é mais animador. O empresário sente na tarefa uma dose extra de humilhação. Não há esperança. Se há é uma esperança ilusória, seguida de retumbante fracasso.

O mundo tornou-se um lugar opressor para o empresário. Tudo que lhe resta fazer é adiar a hecatombe. Pouco há para ser salvo. Não suporta mais ouvir, ler ou pronunciar a palavra crise. Mais do que uma palavra a incomodar é o verbo se fazendo carne e lhe devorando. As vendas não irão melhorar. Os ventos do mercado a cada dia empurram a sua pequena nau ao caminho de um impiedoso buraco negro.

Senta-se na sua mesa de trabalho e pouco há a fazer. Não há um mundo novo a ser explorado. A reserva chegou ao fim. O banco não mais lhe concede empréstimos. Não é mais um cliente confiável, sequer desejável. Seus funcionários já não depositam oferendas aos seus pés. É um deus vencido, superado, descartado. Há nos olhos de seus subordinados expressões diversas. Nenhuma delas, no entanto, lhe bate continência como em outras eras. É agora o monstro sanguinário a roubar o futuro dos filhos dos operários. Por sua causa não haverá pão e farinha na mesa de seus súditos. O castelo ruíra. O alçapão está aberto a lhe esperar.

A desconfiança habita todos os espaços dentro do galpão. É quase palpável sua presença. Não carece de fé ou imaginação para tateá-la ou sentir seu bafo a inundar as narinas. O empresário sente que o apocalipse, outrora tão mitológico ou cronologicamente distante, está a bater insistentemente na sua porta. Invadir o lado de dentro e impor sua dinastia é questão de tempo. Minguado tempo.

Há muita burocracia a enfrentar. Concordata. Papéis a assinar. Humilhações e enxovalhos futuros e presentes. Nenhum sol brilha no horizonte. Nem em forma de delírio o sol brilha. Não há vitamina a trabalhar em seu corpo por algum tipo de ordem, de equilíbrio. As energias que sustentam sua vida foram desativadas. Não há comunicação entre mente e corpo. O caos, como um tumor, se instala e opera em todos os turnos.

A ideia de fuga lhe toma por assalto. Não se sente capaz de bolar um plano, o que torna a tarefa fadada a mais um fracasso. Anoitecer e não amanhecer. Sumir do mapa, sem dar notícia a nenhuma viva alma. Sair do estado, do país. Ser agricultor no Paraguai. Adotar novo nome e ter novas crenças. Ou talvez apenas se jogar da ponte e ser um corpo que cai e ninguém se dá conta. Mas é covarde demais para a morte. Adotar uma postura de comando diante da morte lhe parece exigir forças demais, que não dispõe no momento.

O empresário tira um dia de folga. Que diferença faz? Não há carregamento de calçados a ser despachado para São Paulo. Não há cliente novo a fechar negócio da China. O que há – supremo aborrecimento – é tecer vãs explicações, exercitar calma de monge, se desviar de olhares, fingir não ouvir gracejos e fazer promessas para credores. É um mundo sem qualquer sofisticação esse: um mundo indigno dele, um mundo que ele jamais desejou ou tolerou. É agora toda a habitação que lhe restava, é sua única pátria.

Mas ele tira o dia de folga. Decide não trabalhar. Faz um passeio pela cidade. Escolhe uma praça qualquer e se vê ridículo, finito, sentado num banco de cimento. Poderia dar milho aos pombos. Mas não há milho em suas mãos nem pombos aos seus pés. Poderia namorar. Lançar-se em vespertinas aventuras com alguma funcionária como em outros tempos. Não é mais desejado. Não mais deseja. O lençol revirado e amassado por fluídos de outros tempos agora é uma vaga lembrança, buscando espaço, sem muito sucesso, em suas memórias. Não é mais o potente e viril touro do passado. É somente fiapo daquela musculatura, agora sendo servido num banquete para abutres.

Um passeio sem grandes acontecimentos. Um itinerário modesto, uma perda de tempo sem qualquer propósito. O empresário tenta se concentrar no tédio que povoa o momento e extrair alguma elegia. Sua vida está seca de encanto há tempo demais. Observa, por trás de uma folhagem a uns trinta metros um senhor alto, de seus quarenta ou cinquenta anos, se masturbando. Sem demonstrar grandes pudores, o homem exibe para um público imaginário seu falo como se fosse um troféu raro. A cena tem todos os elementos de uma comédia doentia. Mesmo assim o empresário se mostra interessado. Vê naquela demonstração da miséria humana um aliado para sua degradação. Não se sente tão sozinho na arte de interpretar um infeliz, um ultrajado.

Ao ser notado, mesmo que à distância, o homem recolhe seu membro, vira as costas e sai rapidamente na direção oposta de onde está sentado o empresário. O evento distrai o empresário por alguns minutos. É uma espécie de trégua da sua condição absurda.

Sente sincera inveja do louco que tem o hábito de exibir sua genitália na praça. Há nele algo que o empresário não tem: possivelmente não está consumido com a ideia de ter falhado em sua missão como homem.

O empresário não sente vontade de voltar à fábrica. Voltar ao seu mundo falido e claustrofóbico é assinar sua sentença de morte social. Mas não poderia viver para sempre no jardim.

Volta para fechar a fábrica e colher o ar fétido do despejo. O empresário vê no ato, banal e mil vezes repetido, uma metáfora de sua condição. Em casa, exilado de parte do sistema, escolherá entre batata inglesa e batata doce para o jantar. E depois, sob a benção de alguma pílula, dormirá. Pensará numa forma de fazer com que a noite nunca termine.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 28/01/2016
Reeditado em 21/04/2021
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