Um real

Aquele pedaço de metal brilhante sobre a calçada pisoteada por tantos chamou sua atenção. Abaixou-se para pegar: uma nova e reluzente moeda dourada. Um real.

Imaginou que fosse um bom presságio achar dinheiro assim, na rua, ainda que um valor tão insignificante. Não conseguiria nem comprar um picolé de limão ou um suco gelado que amenizassem seu calor; no máximo, uma pequenina garrafinha d’água. Naquele boteco duvidoso daquela esquina ruidosa, porém, com a moeda poderia comer um salgadinho encharcado de gordura rançosa e tomar um suco sabor amarelo. Comprar cinco chicletes ou o mesmo tanto de balas. Três ou quatro lixas de unha ou uma caneta Bic (com troco?). O saquinho de amendoim do semáforo ou um docinho - dos bem pequenos - na padaria nova do bairro. Mas nada daquilo era necessário; assim, preferiu passar a moeda adiante.

Não tinha certeza se o frentista que às vezes calibrava o pneu de seu carro ficaria feliz ou indignado com um real de gorjeta. O manobrista do restaurante fino, na calçada à frente do qual passava naquele instante, com certeza teria tomado a moeda com nojo, caso algum cliente lhe oferecesse tão aviltante valor. Mas havia o Marechal.

Marechal era aquela alma penada que quase sempre ficava no meio do quarteirão da rua paralela à principal, sentado à porta de uma construção abandonada, balbuciando suas frases ininteligíveis sob uma espessa barba negra e uns farrapos encardidos, cujo cheiro se adivinhava ao longe. Havia sido sargento do Exército, mas, ao defender um soldado discriminado pelo tenente, fora expulso; tivera um bom emprego como professor de história, despedido da escola por um diretor injusto; sua mulher o traíra com o próprio irmão; o filho, andando de bicicleta, morrera degolado por uma linha com cerol; a filha fora estuprada aos oito anos pelo avô. As justificativas para sua condição miserável eram tantas que ninguém sabia ao certo o que era verdade e o que era devaneio nas histórias do Marechal. Em todo caso, foi tomando o caminho que parecia mais justo: dar a ele a moeda perdida, que lhe traria um pão para alimentar seus vermes ou um gole de cachaça para acalmar seus fantasmas.

Mas Marechal não estava, e isso desnorteou seus propósitos. Tentou imaginar outro destino nobre para a moeda, sem sucesso. Então avistou a loja de armarinhos e pensou que talvez precisasse de uma agulha de costura... Mas o que faria com a agulha sem a linha? E nesse momento voltou-se para si. Lembrou-se de alguém, alguém que era a linha sem a qual ela, agulha vazia de sentido, jazia inútil espetada em algum canto. Ou então a agulha - sem a qual ela, linha enroscada sobre si mesma, carecia de serventia. Um real: quantas mensagens pelo celular poderia enviar? “Eu te amo”, “Estou com saudades” e “Não quero mais te ver”. Melhor não: as três numa só, para economizar. “Te amo e estou com saudades, mas não quero mais te ver”. Depois desta, uma outra, com um pedido de desculpas, sensibilizando o destinatário com sua visível confusão mental. E finalmente a terceira e última, ratificando a mensagem principal - uma excelente oportunidade de parar de postergar sua decisão, dando rumo à sua vida emocional conturbada com apenas uma frase. Mas qual delas? “Eu te amo e estou com saudades” ou “Não quero mais te ver”?

Decidiu devolver a moeda ao seu local de origem – a calçada -, mas fazendo, antes, com que seu valor se tornasse inestimável: oráculo inusitado, o pedaço de metal definiria qual das duas seria a última mensagem pelo celular. Iria jogá-la ao alto, banal cara-ou-coroa; e, quando caísse ao chão selando seu destino, lá a deixaria.

Assim foi feito. E ali quedou-se a moeda, esperando indiferente seu próximo dono, com uma de suas pressagiosas faces rebrilhando ao sol.

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Publicado originalmente no blog Letras do BVIW em fevereiro de 2011