ADEDONHA SEM VERGONHA

 


Sentados na mureta de um alpendre, um grupo de crianças, meninos e meninas entre 8 e 11 anos, brincavam de adedonha de memória. Daquelas bem sem vergonhas, sem papel nem caneta. Na memória, improvisada, o que presume muita honestidade e confiança, pois é como jogar palitos pelo telefone. Um troço que entre os adultos não daria certo. Estavam na letra "D" e inventaram uma categoria de coisas/palavras, no caso "Doce". Acho não existirem muitos doces iniciados com a letra "D", como no caso das frutas, só os mais sabichões lembrariam de "Damasco". E foi exatamente um desses sabichões, e também bastante malandro, quem teve a ideia de dizer "Doce de leite". Então a menina inventora das regras da brincadeira contestou:
_Pera aí! Esse doce não vale, senão valia "doce de goiaba", "doce de coco" ou "doce de cacau".
_Você podia ter falado qualquer um desses que também tinha acertado. Mas não, inventou de falar "Dori" que é só uma marca de amendoim. E nem todos são doces.
_Mas assim a brincadeira acabava a graça, qualquer doce ia começar com "D".  Mas não é assim, invés de "doce de goiaba" é "goiabada", "doce de coco" é "cocada" e "doce de cacau" é...
_"Cacauda"!
Antecipou um dos menorzinhos.
_Não!!! Pode ser "chocolate".
E seu êmulo:
_Então doce de mamão é "mamãonada", de maçã é "maçãnada" e de leite é "leitada"?
_Não é isso. Não existe "leitada", ninguém fala assim. Teria, eu acho, que ser só "Leite". Mas leite é outra coisa. Então não vale porque leite é leite. Então não pode ser doce de leite.
_Então doce de leite não existe?
_Existir, existe. Mas na brincadeira seu nome não vale. Porque uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa...
_Então doce de leite é e não é, pois senão valia, porque ele é doce. Ele é só se você quiser, não é?
O troço estava ficando confuso, o resto da garotada ficou calada. Será que era aquilo o tal de namoro? Gente grande que tá namorando é que vive assim brigando por nada, até por causa de doce que começa com a letra "D".
_Não é isso, é que não pode ser de qualquer jeito, senão a brincadeira perde a graça. Ele não é de val, e pronto! Ele é doce mas é também leite. Ele é doce mas também ele é uma coisa que é também outra coisa. Entendeu?
Ninguém entendeu, nem eu que estou inventando essa história.
_Você tá dizendo que uma coisa é uma coisa e é também outra coisa. Tá confundindo palavra com coisa. Sei lá! Você tá errada, sua chata. Acha que é dona da brincadeira.
É, parece que estavam começando a namorar.
_Você que é chato e macuquento!
_Você é que é chata, macuquenta e e e e e e... Bucetuda!
Ela arregalou os olhos, pois sabia o que aquilo significava. Ele parece que não, usou porque já tinha ouvido os adultos dizerem. E eles usavam a palavra para xingar os outros, então devia ser um negócio bem cabeludo. Nem imaginava o que era vagina, nem que a dita cuja não existia para xingar e ofender as pessoas.
_Bucetuda é sua vovozinha!
Pronto, sobrou para a ala feminina da família do adversário. Ele não entendeu. Mas teve criança que entendeu menos ainda. Um deles interveio:
_Para com esse namoro! Eu não tô tendendo nadica de nada! Eu acho que doce de leite é doce, por eu gosto de comer junto com queijo! E o que é "bucetuda"? É doce também?
Todos riram, pois foi o único que confessou não entender o rumo que a conversa tinha tomado.
A briga entre esses pequenos tomistas e nominalistas terminou em risadas, numa pequena aula de anatomia prática e numa vontade danada de comer doces. Guerra de criança termina em risada. E quando um ri todo mundo ri, mesmo sem saber porque está rindo. A paz perdurou quando voltaram à adedonha. Pois sortearam a letra "F", e tudo voltou na categoria "Fruta". E foi justamente a menina tomista-nominalista, escolada que estava, quem falou "Fruta-pão"! E como se sabe fruta é fruta, pão é pão, queijo é queijo e beijo é beijo. Fiquem tranquilos pois querela dos universais entre crianças não demanda Inquisição. Pois no final eles sempre emendam as palavras às coisas.


Goiânia, 06 de fevereiro de 20016.