Aquela esquina inesquecível

 

 

        Desde criança evitava as esquinas. Não lhe agradava aquele ângulo, aquela dobra no mapa das ruas. Por ser assim cuidadoso vivia já há tantos anos que nem lembrava mais de sua verdadeira idade. Também, pudera quase a vida toda teve o cuidado de não dobrar esquinas! Fazia trajetos imensos. Dava grandes voltas e volteios para não ter de enfrentar tal temeridade.

 

        Alguns achavam loucura, que ele não passava de um ser “maniático”, como se dizia em sua cidade. Qual o quê! Só ele sabia de sua vida.

 

A Matilde, aquela velha fofoqueira, vivia se rindo dele. Logo ela que costumava conversar com as comidas, enquanto cozinhava. Apoiava a barriga estufada no fogão, a mão esquerda na cintura e a direita mexendo a panela. O pé direito encaixado na batata da perna esquerda e, nesse equilíbrio duvidoso passava o tempo todo, ao lado do fogão, conversando em voz baixa coisas como:

_Esse frango não é nem besta de não sair bem suculento e cheiroso, que ele vai ver só o que eu faço com ele. Ai de você se não crescer direito, seu bolo de fubá, depois de todo o trabalho que tive, experimenta não ficar fofinho...

 

Ficava assim, ameaçando as comidas, como se dependessem delas próprias saírem gostosas ou não. Levou a mão à cabeça e riu.

 

_E depois dizem que sou eu o maluco; é boa!

 

        Perdido nesses pensamentos, de repente, se depara com uma esquina, o velho não teve dúvidas passou direto, mesmo sendo justamente ali a rua onde morava. Mas, não dá importância ao fato, já sabe o caminho a fazer: irá até o meio da avenida principal, entrando na farmácia de Seu Abílio, dali pulará o muro e pronto, já sairá quase em frente ao seu portão. Tão fácil! As pessoas é que não têm imaginação.

 

        Ao chegar à farmácia, Seu Abílio foi logo dizendo:

_ Entre, entre, nem precisa pedir - e olhou, significativamente, para o filho de doze anos que estava no balcão, fazendo contas em um caderno. O garoto se levantou e seguiu o velho. Colocou um banquinho para facilitar a subida ao muro e não resistiu à tentação de perguntar:

_Por que o senhor não dobra esquinas?

        O velho respondeu surpreso:

_Por quê? Você não sabe como isso é perigoso?

 O menino:

_ Perigoso por quê?

O velho pensou um pouco e retrucou:

_Você nunca ouviu falar em ‘buracos negros’, ‘triângulo das Bermudas’, abismos sem fundo? Então, tudo isso pode se encontrar na virada de uma esquina. Veja, eu estou aqui inteirinho porque nunca me arrisquei a virar uma esquina. Fui prudente meu filho.

–Mas, disse o garoto, _ quantas pessoas viram esquinas e não acontece nada!

 _ Não é com todas as pessoas que acontece, mas vai saber com quem pode acontecer? Como no triângulo das Bermudas, por exemplo, não são todos os navios e aviões que desaparecem, somente alguns. Por quê? Só Deus sabe.

 

        O menino ficou estupefato, com a boca aberta, sem entender direito a causa daquela compaixão que lhe bateu no peito, enquanto observava as acrobacias do homem velho, magro e decidido.

 

Quando o velho já estava do outro lado, o garoto subiu rápido no banquinho e gritou para ser solidário ao homem:

_O senhor tem toda razão, me abriu os olhos, nunca tinha pensado nisso.

 

        O velho todo satisfeito sorriu e pensou:

_Claro, ninguém pensa nas coisas verdadeiramente, perigosas da vida.

 

Nem bem terminou de formular esse pensamento, estancou o passo e no mesmo instante sua expressão se transformou em uma máscara de tristeza. Num clarão de memória vê, de relance, o menino miúdo que fora um dia, parado ali, no portão dessa mesma casa onde mora. Olhava para as costas daquela que era o ser mais importante de sua vida, caminhando em passos firmes pela calçada e que sem olhar para trás dobrou aquela esquina inesquecível, desaparecendo para nunca mais voltar.

 

 

 

                                                                   Célia Regina Marinangelo