ODILA - UM ANJO DESPREZADO

Em criança, era franzina e doentia. Asma, alergias várias, problemas digestivos, acne e outros achaques, cuja lembrança não me ocorre. Era, porém, inteligentíssima.

Não fora um bebê fofinho (daqueles que as mulheres dizem ter vontade de morder), nem se tornara criança formosa. Muito magra, pernas finas, ossuda, cabeluda, nariz adunco e jeito esquisito, ou talvez seja o caso de descrevê-la como desajeitada, para tudo. Não tinha como dar mais de vinte passos sem cair ou topar com algo, e quando a coisa chegou ao ponto de trincar-lhe um osso, resolveram consultar um neurologista. O diagnóstico foi providencial.

- A menina não tem problema nervoso, mas é mais míope que o mister Magoo.

Arredia e reclusa, quase não saía de casa, não fazia amizades e se dedicava, com muito prazer, à leitura. Lia de tudo que lhe caía às mãos, mas preferia romances, aventuras, ficção e biografias. Cresceu numa época em que a mídia eletrônica ainda não existia, e a única fonte de informação era a mídia impressa, através de revistas, jornais, livros..., bibliotecas.

Os pais não achavam normal tanta leitura e a levavam a psicólogos, psiquiatras, mas nada de anormal encontravam na menina, a não ser seu desinteresse pelas coisas comuns.

Estudante sagaz, interessada, precocemente culta, mas desligada do convívio social, era maltratada, na escola e na rua, pelos arruaceiros de ocasião, desprezada pelas colegas e invejada por muitos, pelas ótimas notas. Chegou à pubescência, desfigurada pela extrema magreza e ossos salientes, óculos fundo de garrafa e indumentária desleixada. A vaidade não era prioridade. Considerava-se monstruosa e acreditava nos apelidos e declarações maldosas dos que lhe cruzavam o caminho. Chorava e lia, fornecendo asas à imaginação e criando mundo fantástico, onde era respeitada, querida e bela. Dormia e acordava refeita.

Poderia ter escolhido qualquer faculdade que quisesse, pois se classificara em primeiro ou segundo lugar na maioria dos vestibulares, mas optou, para espanto de todos, por estudar em universidade africana, recebendo bolsa integral e ajuda de custo para subsistência. Após a formatura, permaneceu naquele continente e participou de muitas jornadas de auxílio a povos carentes. Voltou ao Brasil, recomendada pela ONU, e foi disputada pelos melhores hospitais, mas escolheu tratar dos ribeirinhos em área pobre do Amazonas. Lá viveu e morreu na luta.

A maioria dos seus antigos vizinhos e colegas de escola, na cidade grande, viveu todos os sabores e dissabores do cotidiano convencional. A insensibilidade que os fez zombarem da menina, também provocou deformações de caráter, que transtornaram suas existências, até o ponto de gerar problemas de relacionamento, de saúde e subsistência. Praticamente, todos se viram, após a morte física, desamparados, perdidos, enfraquecidos e meio zonzos. Choravam e pediam auxílio, mas só depois de um bom tempo, de solidão e sofrimento, foram socorridos por anjo luminoso, que, um após outro, levou todos para linda casa de saúde, onde foram tratados com carinho. A criatura angelical era uma mulher, linda, que os visitava amiúde, dizia coisas boas, examinava-os, delicadamente, e fazia todo o possível para que se sentisem bem. Conforme se recuperavam, foram se reencontrando naquele ambiente diferenciado, já que no plano físico tinham perdido o contato e não se viam desde a meninice. As experiências recentes, trazendo lucidez ao raciocínio, os fez pesar as más atitudes do passado, e entre as tantas aprontações, estranhamente, focavam a zombaria atroz, endereçada a Odila, vizinha, colega ou conhecida de todos, como se aquilo simbolizasse a incorreção de suas vidas.

Certo dia foram chamados a uma reunião e informados de que deveriam voltar a viver na carne, e deveriam tentar consertar os estragos da vida anterior. Para isso, teriam o auxílio de antiga amiga daquela época, e viram entrar a anjinha linda que os socorrera. Antiga amiga?

Diante de seus olhos, a menina se transformou em Odila, para espanto e choro geral.

Após muitos pedidos de desculpas, o caso se encaminhou a contento e todos voltaram à lide carnal, mais ou menos na mesma ocasião, e eram vizinhos, amigos, conhecidos; e foram crescendo juntos, estudando na mesma escola. E a anjinha voltou a se chamar Odila.

Simpática, bondosa, inteligente, solidária, mas reclusa. Feições e jeito semelhantes ao que tivera antes (por sua própria escolha) e muito estudiosa, além de trabalhadeira.

Desde cedo, porém, enfrentava zombaria, maus tratos, desprezo daquela mesma turma de antes, que mesmo tendo recebido tanto carinho, não conseguira modificar-se de modo a evitar que o instinto sobrepujasse a razão. Iriam sofrer, novamente, e Odila seria enviada para longe, novamente, e cuidaria de outros, até que seus amigos, um dia, acordassem, pra valer.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 20/02/2016
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