A COR CERTA

Ela chegou cansada do Centro Cultural, onde desenvolvia seus estudos.

Desde o ano anterior, quando descobrira sua vocação para a escrita, não parara mais de produzir pequenos contos e crônicas, a maioria sobre o cotidiano de sua região e fatos ou acontecimentos passados, que lhe vinham à memória. E fazia sucesso com amigas, colegas e até professoras, que a incentivavam, fornecendo livros e equipamento adequado ao trabalho.

Por conta da popularidade de sua produção literária, chamou a atenção da comunidade e autoridades religiosas locais, que se empenharam em lhe conseguir bolsa de estudos numa escola conceituada do exterior. Com a vitória da empreita, foi agraciada com tudo a que teria direito, como residência, vestimenta, alimentação, assistência total, material e estudo.

A menina estava eufórica. Conquistara o respeito de sua gente, de amigos e colegas, e agora iria para outras terras, aprender mais em outro idioma. Sentia medo e alegria ao mesmo tempo, sem saber direito como controlar a emoção do novo e o afastamento da família.

Viajaria no dia seguinte, então resolveu que aquele último dia em sua terra seria todo dedicado a estar com os seus pais e parentes mais íntimos, conversando, cantando, comendo coisas gostosas e fazendo planos, mas conforme avançava a noite, não deu para segurar a choradeira. Era lágrima e lamentação para todo lado, e já era madrugada, quando o sono veio.

Sonhou que estava em um lugar lotado de gente, e todos andavam rápido, não falavam nem olhavam para os lados, e tinham um jeito estranho. Alguns se assemelhavam a ela, mas a maioria apresentava uma coloração de pele diferente, como a de um garoto que estudava em sua escola e tinha vindo de muito longe. Lembrava que quando ele chegou, todos olhavam com admiração a sua aparência, e pediam para tocar em seu corpo. Os mais velhos sabiam de pessoas como ele, mas os jovens nunca tinham visto alguém assim antes. Ela fora a primeira a falar com o rapaz e o apresentou aos outros, que logo se acostumaram com seu jeito.

Agora ela estava em um lugar, onde quase todos se pareciam com aquele colega.

Entrou no que parecia ser uma escola, chegou-se a uma aluna, que parecia ter idade próxima à sua e se apresentou: - Oi! Meu nome é Shaira, e o seu?

- Que nome estranho! Você é toda estranha.

- Na minha língua, meu nome significa “poetiza”, e não me acho estranha.

- A cor de sua pele, suas roupas, o jeito de falar. Você é muito esquisita.

A menina se foi, deixando nossa heroína espantada e pensativa. E assim acordou.

Não teve tempo de refletir sobre o sonho, pois mal se pôs em pé e já teve de arrumar suas coisas para a viagem. Após longa e cansativa jornada, chegou à grande cidade, onde, para seu espanto, via desfilar, perante seus olhos, aquela multidão do sonho, do mesmo jeito, na mesma situação e com as mesmas feições. Não teve como evitar uma exclamação:

- Como são pálidos! Tão claros como nosso colega, lá na escola. Estranho, né?

- Neste país, Shaira, quase todos os habitantes são brancos.

De olhos estatelados, ela admirava a movimentação, enquanto se encaminhavam para a escola, onde viveria seus próximos anos. Foi recebida pela diretora, que alertou seu tutor sobre ter providenciado para que a garota ficasse junto com seus iguais. O homem concordou, mas a menina não entendeu o significado da conversa, até ver que suas acomodações eram em um canto ermo da instituição, próximo à cozinha e depósito de limpeza, longe dos outros aposentos, que se distribuíam entre jardins e quadras de esporte. Dividiria um dormitório com outras seis meninas, negras como ela, cujo semblante triste e tenso, demonstrava estarem habituadas a uma interação menos fraternal, com muitas alunas, funcionários e professores.

Foram anos difíceis, em que Shaira descobriu não ter a cor certa para viver plenamente.

Não se acovardou, porém, e se lançou, bravamente, em busca de seu sonho, tendo de se esforçar muito mais, para conseguir muito menos que a maioria. A cada derrota ou negativa, transformava a mágoa em incentivo, e seguia em frente. Desse jeito tornou-se uma celebridade internacional, respeitada e admirada por todos. A tal ponto chegou sua fama, que a escola onde estudou e viveu por anos, recebeu seu nome; na mesma época em que sua saúde já declinava. Faleceu duas semanas antes de sua neta iniciar os estudos ali.

Shaira (tinha o mesmo nome da avó) foi encaminhada pela diretora para o dormitório do fundo, próximo à cozinha e o depósito de limpeza, onde suas colegas eram negras, como ela.

Talvez, se fôssemos daltônicos, as cores valessem menos que as virtudes.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 02/03/2016
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