A tapa

A festa rolara até alta madrugada. Como sempre, após saírem do clube, todos fariam então um lanche para encerramento da noitada antes de voltarem para suas casas, onde dormiriam até a hora de curtirem a praia na Terra do Sol.

Juntos ao cachorreiro se encontravam: era o meeting point pós-festa, depois de encerradas e devidamente pagas as contas nos Diários. Não havia cartão de crédito e as fritas e cubas libres ou tubos de rum e cocas eram pagos apenas com parte da mesada semanal, sempre sobrando um pouco da grana de cada um para o cachorro quente e a coca gelada que deveria encerrar a noitada. Depois, de barrigas cheias, a volta para casa e o ronco despreocupado até o meio dia.

Àquela madrugada, quando ainda dançavam e bebiam nos Diários, uma batida de dois carros não fora percebida pelos jovens em festa. Contudo, graças à demora da Polícia de Trânsito para fazer o laudo do incidente, o mesmo só fora iniciado quando do término da tertúlia, proporcionando aos rapazes e moças que deixavam o clube apreciarem o chocante e triste estado de danos em que os veículos ficaram.

- O culpado foi este! Carlos apontava para um dos veículos e, um pouco bêbedo de tanto rum com coca e gelo – a dita cuba libre – insistia na afirmação, com notória e inconveniente voz alta de embriagado, chamando mais a atenção dos presentes pela língua desarticulada ou sem controle que pelo fato consumado e por todos perfeitamente interpretado. Diga-se, pois, que era costumeiramente manjada aquela voz em todo final de semana e a turminha dele não mais reparava, pois a mesma havia se incorporado ao seu estado de festa, o que se registrava sempre após os primeiros goles e não precisavam ser só de rum. Na maioria das vezes, era apenas cerveja a bebida curtida em algum momento por ele sozinho ou junto àqueles amigos – sempre ou em qualquer instante da quase ociosidade plena em que viviam todos, cuja única obrigação era a exclusiva e única de estudar e nada, nada mais para fazerem. Somente um deles, o Gode, trabalha numa gráfica por imperiosa necessidade de sustentação de sua vida humilde e pobre.

Uma tapa na cara ouviu-se. Fora um estampido e em seguida uma marcha ré, com braços para o alto e revelada instabilidade no equilíbrio do corpo meio bambo, aplicada no rosto de Carlos, acontecendo o afastamento do lépido agressor, que acabara por não ser identificado pelos outros membros da turma na pequena multidão em que se inserira o agredido, fato responsável por evitar que acontecesse uma briga entre os demais amigos e o Zé da Tapa, este nome tenho ganhado de Silvio, o maior gozador dentre todos da turma de Carlos presentes ali (muitas e muitas vezes muitíssimo inconveniente pela sua desmedida maneira de criticar e ridicularizar a todos com quem entendia ter o direito de brincar!). Instintivamente, como que fugindo de algo grave, dirigiram-se ao cachorreiro e, em razão da faixa de etária que beirava os vinte anos, a fome imperava fortemente naqueles estômagos elásticos e insaciáveis. Começaram, pois, a degustar os sanduíches e, como sempre, o mais franzino e mirrado dentre todos, justo o Tarcísio, logo viria a se pronunciar de modo muito contundente:

- Vai se meter com quem não conhece... Só ouvi o estalo!...

- Era o dono do carro! Os demais exclamaram em série, como se certeza tivessem do dito, o que fora certamente uma contradição porque integrante algum do grupo vira sequer a cara do agressor.

Gozações foram levadas a cabo até o final da comilança, com risadas estampadas na cara do cachorreiro, notadamente preocupado com o seu faturamento e, portanto, em não perder a contabilidade dos cachorros quentes e das Coca-Cola consumidos pelos esfomeados jovens. Era velho conhecido de todos de muitos e até frequentes encontros ali, na sua calçada, o que se dava normalmente até o sol informava-lhes a chegada à sua terra. Todavia, posto que Carlos estava de posse do Corcel I de seu genitor, não podia ser muito gozado... Sim, pois a volta de carona deveria ser assegurada naquele carro, de vez que dinheiro algum não mais dispunham para pegar o ônibus, circular ou verdureiro – como os coletivos que circulavam depois da meia noite eram chamados desse jeito, talvez por servirem quase exclusivamente aos verdureiros de madrugada, os quais dirigiam-se às feiras-livres justo quando a cidade ainda dormia.

Quem passa hoje em frente aos Diários nas noites de sábado sabe da sua inoperância... Quem viveu aquele clube nos anos setenta ouve, entanto, a orquestra tocando músicas da Jovem Guarda e da velha MPB. Pode enxergar a fumaça do cigarro de alguns poucos e tenros rapazes no ar denunciando ao mundo suas idades com fraldas, seus rostos imberbes e, enfim, a rala experiência enquanto seres humanos, que lhes é de fato legada somente pela vida experimentada e quando adulto já se é.

Para a turma de Carlos, renasce no imutável ar a voz modificada pelo efeito do álcool e pela esdrúxula e desconfortável situação em que se metera certa feita, sem batida alguma acontecer ou multidão se formar naquele local hoje.

Salvador, 2 de novembro de 2004.

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 06/03/2016
Reeditado em 06/03/2016
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