O Amor Não Mente

“O amor não mente; quem mentem são os amantes”, disse-me um dia Aristides, o porteiro do colégio onde estudei nos inesquecíveis tempos de garoto. Ele proferia com uma voz eloquente e forte, capaz de convencer qualquer indivíduo. Sempre gostei dessa frase, apesar de ter demorado um bom tempo para concordar com o amabilíssimo porteiro. Bons tempos aqueles! Sempre éramos recebidos na portaria com um sorriso alegre e amigável, acompanhado de um aperto de mão e um sincero “Bom dia, meninos! Boa aula.”

Aristides era amado por todos; do rígido diretor Bernardo Peçanha até a moça da faxina. Nós alunos o adorávamos. Há tempos eu não o via, mas sempre lembrava dele e, qualquer decepção amorosa que eu passava, vinha sempre a frase a me torturar “O amor não mente; quem mente são os amantes”. E hoje pela manhã não tive como não lembrar novamente a máxima do velho porteiro quando olhei para Glorinha, agora Dra. Glória de Albuquerque, de braços dados com seu marido e enxugando o rosto com um lenço. Glorinha foi a minha louca paixão de colegial, meu eterno devaneio da juventude, a única que me levou a me expor ao ridículo de uma forma que eu nunca consegui entender e, foi por causa dela, que o Aristides me falou sua sábia filosofia pela primeira vez. Ela ainda está muito bonita. Apesar da inexorabilíssima passagem do tempo, muito bonita. Ainda carrega o belo sorriso de outrora, a mesma cara de sonsa e aquela timidez fingida dos tempos de colégio.

Não obstante o momento doloroso, fiquei contente em rever alguns ex-colegas da época, principalmente os mais chegados como o Almeida, hoje advogado; Pacheco, o escriturário; Dorinha, a professora; Zeca, músico; a bela Paulinha, dançarina de uma casa noturna; o Mosca, mecânico; e o Agenor, esse continua o mesmo malandro de sempre. Todos os dias se aproveitava dos nossos lanches, pedia emprestado nossos lápis e nunca devolvia, roubava nosso material e coisas do tipo. Deu-me um abraço caloroso e não perdeu a oportunidade de me pedir emprestado, mesmo eu sabendo que jamais vou receber, uma nota de vinte. Quanto ao resto, conversamos muito, relembramos momentos bonitos e tomamos umas cervejas na porta do cemitério lamentando a fatalidade ocorrida.

Acendi o cigarro e mais uma vez me veio à memória a frase. Parecia que eu estava vendo o Aristides ali na minha frente dizendo com aquela mão pequena e carinhosa no meu ombro "O amor não mente; quem mentem são os amantes."

Pacheco veio até a mim. Ficamos conversando e fumando enquanto o padre lia um trecho bíblico. Agora eu estava tendo a certeza da sapiência do Aristides. Se eu tivesse acreditado antes no teor verdadeiro da máxima, eu não teria passado pelo que passei com a Glorinha, com a Lúcia, a Fabíola, a Carmem, nem com a megera da Gláucia que quase me levou tudo o que eu tinha.

Começou cair uma chuvinha fina durante as palavras do padre, mas mesmo assim todo mundo continuou onde estava. Debaixo de chuva chegou o nosso exigente professor de gramática Pascoal Menezes, esse era uma pedra no nosso sapato. Com ele não se tirava 9,0, nem 10,0, era no máximo 8,0 porque 9,0 ele só dava pra ele mesmo e 10,0 só pra Deus. Seu Pascoal chegou com sua esposa trazendo uma grinalda muito bonita e nos cumprimentou muito alegremente.

Estava perto do meio dia quando estávamos saindo e, mais uma vez a frase veio de novo a cutucar meu pensamento. Como era verdadeira! Aristides foi magnífico em sua declaração. Ah! Quantas saudades senti dos tempos de colégio, das bagunças nos corredores, das paqueras no intervalo, daquelas conversas com o Aristides antes de entrarmos em sala. Saudades da banda de música do colégio. O Aristides era nosso instrutor e um dos maiores trompetistas que já conheci. Foi através dele que conheci Jazz e Bossa Nova.

O tempo passava e a saudade só aumentava, uma saudade de todos aqueles que foram importantes na minha vida, muitos não puderam ir a o enterro, mas lembrei de todos com muitas saudades. Acontece que a frase, me fazia sentir mais saudade mesmo era do Aristides. Que pessoa! Que coração!

Confesso a vocês de todo o meu coração que, a última vez que eu derramara uma lágrima foi por culpa da Glorinha e, agora vinte anos depois, estava eu aos prantos com saudades do Aristides.

Nunca imaginei que um dia estaria no seu enterro. Jamais me passara pela cabeça ver cena tão triste, tão dolorosa. A causa mortis? Simples, morreu de bondade, morreu porque seu coração era grande demais para o seu corpo, morreu de complacência e de amor. Todos nós nos abraçamos e cantamos em coro Nervos de Aço, do Lupicínio Rodrigues, que ele adorava. Choramos muito e jogávamos flores amarelas enquanto cantávamos. Cada um de nós tinha uma ou várias boas lembranças do Aristides. Cada um contava uma história que passou com ele e a saudade e o pranto aumentava ainda mais. A chuva cessou e eu proferi um discurso poético e pomposo que ele ia com toda certeza adorar, pois, vocabulário elegante era o seu fraco.

O caixão foi posto no túmulo. Não parava de chegar gente com flores. Resolvi vir embora, já estava na hora, mas antes, fiz outra coisa que o Aristides onde quer que esteja, abriu o seu sorriso azul claro; mandei fazer uma lápide de bronze com a seguinte frase “O amor não mente; quem mentem são os amantes”.