Obrigado, Chico

O fato é que o velho me odiava, minha presença causava imbróglios no seu estômago, eu via estampado na sua face. Não que eu não compreendesse o seu lado de sogro, porém, parece que seu ódio ia muito mais além, não era apenas por eu ser o namorado da sua linda filha Rita, um primor de menina, um mimo.

Conheci a Rita num desses sarais do Clube da Noite onde a mesma se apresentava como cantora ou tocando violino nos recitais. Jeito delicado, educada, simpaticíssima e de um sorriso fatal. Nós fomos apresentados pelo mestre das artes cênicas Miguel, o cupido de todos os seus alunos. Rita era um encanto, me apaixonei de cara. Alguns meses depois fui à sua casa, já conhecia o irmão, uma grande pessoa que me ofereceu sua amizade e até hoje o trato com igual carinho. A mãe, uma senhora de estatura média e de uma simpatia indescritível. A filha herdara essa peculiaridade da mãe angelical. Dona Gertrudes, esse era o seu nome, não era apenas o que a descrição revela, era também um espetáculo quando o assunto era culinária, punha nos pratos os acepipes dos deuses. Doces e salgados pra enlouquecer qualquer estômago. Até hoje eu sinto no paladar da minha memória aquela baba-de-moça que só ela conseguia atingir aquele sabor. Já o velho, esse era indigesto ao extremo. Sujeito de faces rosadas e tom de voz grosseiro, tosco. Estava sempre de mau humor e era um pai conservador e feudal. A Ritinha e seu irmão sofriam o diabo nas garras do coroa. Sequer apertou minha mão quando fomos apresentados. Não que eu fizesse tanta questão, mas o mínimo de diplomacia ele poderia ter.

Passados alguns meses eu fui me acostumando com os modos tirânicos do meu sogro. Ignorava qualquer possível alfinetada ou me fazia de surdo a qualquer comentário estúpido de sua parte. O que eu não compreendia era como um sujeito que ouvia música clássica, sabia francês e economia, que gozou de uma educação tão requintada agia como um troglodita. De primeiro momento eu pensei que fosse por que eu era um rapaz do morro, frequentador de rodas de samba e um pouco maculado por uma certa fama de boêmio. Não era isso, era muito mais. Rita era a caçula, três anos mais nova que seu irmão Nicanor, um pouco mimada, é claro, mas longe de ser uma patricinha chata. Tocava piano e violino e fazia aulas de balé. Ao contrário de mim que vivia a suciar com os pretos, vadios e malandros com meu violão a tira colo fazendo partido alto nos churrascos do morro. Era natural que o velho ficasse enfurecido. Todavia, o restante da família e os empregados me adoravam. A tal cisma do coroa começou a me corroer as entranhas e decidi a qualquer momento das um basta na intriga de uma vez, mesmo que, para isso, eu tivesse que abrir mão do amor da Ritinha, a flor que preenchia os meus sonhos de poeta.

Certa vez era aniversário da Ritinha e eu já estava passando pela agonia pela qual passa todos os namorados, a de comprar o presente, quando recebi uma ligação. Era o meu cunhado Nicanor reforçando o convite que no dia anterior sua mãe havia me feito; comparecer à sua casa à noite para a festa de aniversário. Comprei o presente e decidi que seria naquela noite que eu ia mostrar para o meu sogro que ele não me causava nenhum medo e que eu não era sujeito de baixar a cabeça para outro sujeito fosse ele quem fosse.

Cheguei na hora esperada e encontrei um ambiente assaz aprazível; boa música, pessoas felizes, e, claro, os quitutes da minha adorável sogra Dona Gertrudes. Era uma

comemoração simples só com os familiares, os empregados, os amigos mais chegados e eu. Um drinque aqui, outro ali, um petisco vai, petisco vem, abraços na aniversariante pra cá, beijos pra lá e o velho continuava mais macambúzio do que outrora fora. Nem uma palavra, nem um sorriso sequer e, algumas horas depois, afastou-se dos demais e sentou-se perto do piano para deleitar-se com uma Ária de Mozart que a Ritinha começara a tocar divinamente. Procurei dirigir-lhe a palavra, mas em vão.

Já passava das onze horas da noite quando meu cunhado Nicanor, democrático e eclético como era, trouxe à revelia seu violão e propôs variar um pouco o repertório da festa. Ritinha fechou o piano, o seu pai se aproximou da turma, ainda ensimesmado e sentou-se de frente pra mim. Nicanor entregou-me o violão e me pediu pra eu tocasse algo pra acompanhar a bebida. Abracei o instrumento, afinei-o e, já estava pensando num samba do Noel ou do Cartola quando notei que o velho olhava pra mim como quem diria: “O que esse malandro vai mandar?” Era dada a hora de dizer uns bons desaforos para o velho.

Tomei um gole, dei um trago saboroso no cigarro e, antes de emitir o primeiro acorde, eu me dirigi ao meu sogro e, cinicamente no auge do meu atrevimento, ofereci a canção que eu ia cantar ao velho. Ele teve um certo espanto e Dona Gertrudes já me parecia um tanto baratinada com a minha ousadia. Comecei então cantar a belíssima Jorge Maravilha do Chico Buarque e, já nos primeiros versos, a cara do coroa estava mais rosada que de costume.

“E nada como um tempo após um contratempo

Pro meu coração...”

E fui cantando o restante e frisei bem o olhar em direção ao velho e mencionei os seguintes versos como forma de recado:

“Mais vale uma filha na mão

Do que dois pais voando”

Todos na sala estavam estupefatos como tamanha ousadia. A Ritinha me olhava com um sorriso de amor e meu cunhado com um de aprovação como se eu estivesse fazendo aquilo que ele sempre quis fazer e nunca fez; desafiar o pai. E era isso mesmo. No refrão eu fiz uma cara de ódio e de deboche e mandei os versos gritando mais do que cantando como um desabafo, pois, naquele momento, a canção era a minha arma.

“Você não gosta de mim, mas sua filha gosta

Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”

Terminei a canção e o coroa dirigiu-se a mim, mas, para minha surpresa, ao invés de apoplético, meu estava era inebriado após a audição do que eu acabara de tocar. Eu não sabia, mas um dos segredos do velho é que ele era fã de carteirinha do Chico Buarque. Daí a explicação de seu casal de filhos se chamar Nicanor e Rita. Levantou-se e ,pela primeira vez na vida, apertou minha mão com um entusiasmo inenarrável. E me abraçou e me elogiou e me exaltou. Eu é que agora estava atônico e não compreendendo patavinas. O velho me pegou pelo braço, me levou até o seu misterioso quarto e me mostrou discos, carteirinha de fã-clube, fotos, reportagens de jornal, livros e tudo o mais

que dizia respeito ao Chico. Ficamos até às quatro da manhã cantando, tocando e conversando sobre esse artista tão adorado.

Desse daí em diante, ficamos amigos e o velho agora era um concorrente fortíssimo da Ritinha quando o assunto era a minha atenção. Todas as noites me recebia como um dos seus colegas economistas que frequentavam a casa, me servia whiskey do melhor, sempre fazia questão de assistir aos jogos do Fluminense em minha companhia mesmo sabendo que eu era rubro-negro roxo e vivia a repetir que a sua filhota não poderia ter arranjado um namorado melhor.Pois é, caro Chico, você disse que mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando, mas eu acho que melhor mesmo é desbancar um pai super protetor e, não ter só a filha, mas ter o pai e a filha comendo hipnotizados na nossa mão.

Obrigado, Chico.