O eterno Napu

No início dos anos sessenta, podia–se ver Napu em seu pijama de listras alvinegras passando seu tempo na Praça da Lagoinha, em paz com a vida, gozando os proventos de sua aposentadoria pelo INSS e aproveitando os aluguéis parcos, mas certos, apurados de suas inúmeras casas alugadas a pessoas honestas em Fortaleza. Ocupava sempre aquele espaço em frente à sua residência para contar estórias novas ou repetidas, entretanto nunca admitia que alguém risse de suas “verdades” sérias, inventadas e reveladas com perfeição tanta aos seus apreciadores fiéis, aí incluindo–se crianças, moços e velhos em seus momentos descompromissados com o passar das horas.

E num dia muito quente da capital alencarina, lá estava às três horas da tarde o homem famoso e exótico, de cuja família pouco se sabia, trajado em seu pijama de listras verticais velho e conhecido a falar da chuva forte da madrugada daquele dia, quando a rua Guilherme Rocha mais uma vez se transformara em rio, como quando de momentos preciosos em que ali se podia ver crianças brincando de navegar em câmaras de ar velhas como se boias fossem, na ocorrência de chuvas durante a claridade do dia ou no começo da noite, naturalmente antes da hora dos meninos irem dormir. Muito comunicativo e sério, Napu falava aos usuários assíduos e pontuais da Praça da Lagoinha ao seu redor:

– Seu ‘mininu’, pois eu já ‘durmia’ forte, quando ouvi aquela ‘zuada istrundosa’: trum! trum! trum!; pulei da rede ‘pra vê’ do ‘qui’ se tratava!...

– O ‘sinhô’ não ‘ficô cum’ medo? ‘Pudia’ ser um ladrão ou u’a assombração!

– ‘Qui’ nada, seu ‘mininu’, eu peguei logo foi meu pau–de–fogo e fui ‘ispiá’ na brecha da porta do fundo lá de casa!

– E se algum bicho ‘tivesse lá, o ‘sinhô’ ia ‘atirá’ nele com o ‘treis oitão’ ou ia ‘atirá’ pra cima, como aquele ‘homi qui’ saiu ‘currendo’ todo cagado na caçada da onça pintada no alto da serra de Maranguape?

– ‘Mais’ eu não ‘sô homi’ de ‘fugí’ da raia: ‘sô’ é macho do pombão, ‘quê vê’? ‘num vê’ que bicho ruim eu encaro é de frente!

Napu deu uma paradinha como que para lembrar algum detalhe do ocorrido, coçou o topo da cabeça e a genitália, tirando também o pijama de entre as nádegas e olhou para os pés, calçados em sandálias de couro surradas, como se quisesse ter a certeza de que estava realmente em pé e firme para continuar a narração do fato curioso sobre aquela madrugada passada:

– Pois bem, seu ‘mininu’, ‘quasi’ vossemicê não deixa eu ‘contá’ o ‘qui’ vi e ‘quasi’ esqueci do sucedido ‘onti’!

– Peço ‘disculpa’, ‘podi falá’ que eu ‘sô tudu uvido’!

– ’tava ‘fartando’ luz, tive que ‘arranjá’ uma vela na gaveta da mesa da ‘cuzinha’!

– Arranjou?

– Arranjei, ‘mais’ quando ‘dici’ da rede ‘pra pegá’ o ‘rivólvi’, ‘trupicei’ no pinico de mijo e foi uma ‘melera’ danada!

– E o danado do ‘rivólvi’ tinha bala?

– Meu pau de fogo ‘tá sempre cheio das dundum, todo mundo aqui sabe disso!

– E então ‘homi’, viu ‘qui’ bicho ‘tava lá no ‘quintá’?

– Tive de ‘pegá’ minha lanterna, ‘purquê’ o vento ‘qui intrava’ pela ‘cuzinha’ ‘tava muito forte e ‘apagô treis vez’ a vela!

– Sim, ‘mais’ a lanterna tinha pilha?

– Tinha, era ‘novinha’! ‘Mais vê se vossemicê’ se cala ‘pra qui’ eu possa ‘contá tudim direitim’, ‘tá bom?

– ‘Disculpi, disculpi’!

– Quando abri a janela da porta da ‘cuzinha’, a chuva ‘tava tão grossa e o vento ‘tava tão forte, tão brabo, ‘qui’ a luz saiu em ziguezague!

– Sim, sim, o ‘qui’ ‘tava no ‘quintá’?

Naquele momento, Napu ficou bem sério, seus olhos se arregalaram, fez uma pausa e continuou:

– Seu ‘mininu’, foquei a lanterna no fim do meu ‘quintá’ e tudo ‘tava ‘munto iscuro’ lá, as ‘arvi balançava’: era ‘munta’ água, seu ‘mininu’!

– E o trum! trum! trum! ‘qui acordô’ o ‘sinhô’, ‘homi’?

– ‘Fio’ de ‘Deuzu’, ten’a ‘paciença’, ‘qui vô contá tudim’, certo?

– ‘tá certo, ‘disculpi’!

– Quando ‘apuntei’ a lanterna no chão do ‘quintá’, lá ‘tava o bichão, todo ‘inlamiado’!

– ‘Inlamiado’? O ‘qui’ era? diga logo, ‘homi’ de ‘Deuzu’!

– Era um ‘truvão’ atolado na lama!

Fora um final hilariante, porém sem risadas ou risos dos escutadores atentos daquele contador de estórias, naquele momento quasi terminando mais uma de suas façanhas com muitos ouvintes à sua volta, uns em pé e outros sentados no banco daquela praça (o banco mais perto da Padaria Ideal, localizada na esquina das Rua Guilherme Rocha e Avenida do Imperador). Todavia, conforme sempre acontecia ao final de cada estória contada, todos permaneceram calados, como se fossem discípulos daquele mestre popular, pois sabiam que se rissem perderiam certamente a chance de ouvir outras anedotas do velho Napu, que no folclore alencarino de então ocupava informalmente seu espaço pelas muitas mentiras vespertinas tão bem contadas por aquele homem a todo e qualquer ser humano que dele se aproximasse naquele lugar histórico da Praça da Lagoinha, no tempo lembrado em que o coreto único no centro daquela área pública era ocupado frequentemente por retretas alegres à noitinha, onde também se podia ver casais de namorados em juras de amor acomodados nos muitos bancos daquela praça bonita ou a voltear em passeio vagaroso sobre as calçadas circundantes de sua área; também podiam ser vistas crianças a guiar seus patinetes e bicicletas, sempre em harmonia com os transeuntes, todos em livre lazer. Aquela realidade ficou na saudade e registrada para sempre na memória de muitos filhos de Fortaleza, como também a lembrança da chegada dos anos terríveis do regime político nascido do golpe militar de 1964 contra a nação brasileira, que frustrou tal convivência social em lugares públicos, conforme aconteceu de fato com a belíssima Praça da Lagoinha. Lá, habitantes de suas proximidades iam habitualmente para aproveitar da liberdade em momentos de descanso e/ou lazer, um cotidiano que os tempos pós–golpe militar fizeram por desaparecer e que a libertação do povo das garras militares sujas nunca mais recuperou! Contudo, o que é ainda pior, tem–se que hoje as praças das capitais brasileiras mais populosas estão habitadas por indigentes, crianças desamparadas ou sem assistência social, homossexuais, prostitutas, larápios, drogados, traficantes de tóxicos etc, que os sociólogos definem muito bem como formadores da escória social triste, um fato admitido como resultante do processo revolucionário brasileiro de meia quatro, cuja relação entre ambos está bem compreendida pelos historiadores nacionalistas sérios do Brasil.

Sem perder a pose, com um ar de homem muito ocupado, o inventor fértil de estórias pediu licença aos seus ouvintes eternos daquela praça, dizendo–lhes estar muito vexado e que precisava ir até a polícia, quando alguém logo perguntou:

– ‘Seu’ Napu vai ‘dá quexa’ do ‘truvão’?

– Não ‘homi’, ‘cê ‘tá doido, eu ‘num vô pro’ Céu agora!

– Aonde o ‘sinhô’ vai?

– ‘Vô dá quexa’ do sumiço de meu ‘canaro qui’ fugiu ‘cum’ gaiola e tudo!

E saiu caminhando, arrastando os pés lentamente, paradoxalmente à pressa então revelada aos seus ouvintes habituais, os quais, como de costume ao final de cada estória apresentada pelo contador, lá ficaram unidos a murmurar algo sobre seu mestre.

Salvador, 2006.

Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 125-129).

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 16/03/2016
Reeditado em 16/03/2016
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