Etneconi e a lição do parceiro falso Ateracip

Naquela manhã, Etneconi havia acordado agitado, pensando no porvir de sua empresa futura, a qual deveria ser aberta com a ajuda do SEBRAE do município de Salvador, por ser mais rápido e mais barato tal processo ali conduzido. Tinha algumas dúvidas sobre qual área do mercado deveria cobrir, mas havia se convencido que deveria aproveitar sua experiência de engenheiro egresso de empresas grandes e economicamente relevantes, devidamente instaladas no Estado da Bahia. Naturalmente, trabalharia com produtos high tech de mais fácil comercialização junto às diversas classes sociais, não só pelo aspecto da novidade que então apresentavam e que deveria certamente atrair os consumidores baianos (brasileiros e latino–americanos, provavelmente!), mas pelos preços baixos frente aos similares fabricados neste país.

Depois de ter realizado algumas viagens ao exterior, Etneconi estava deslumbrado com os sistemas de som e computadores – eletrônicos, de um modo geral – raros e de obtenção difícil no Brasil e na Bahia, porém abundantes e baratos nos Estados Unidos, onde a escala de produção e a demanda dos produtos explicam seus preços supercompetitivos em todos os lugares do mundo e, em especial, na Terra Brasilis, onde até recentemente se fez reserva de mercado para fabricantes nacionais e até mesmo para estrangeiros por muitos anos, os quais produziram sempre bens de qualidade pouco confiável e de preços elevados frente aos praticados no resto do globo, tudo isto em função de terem tido assegurada a demanda de comercialização de seus produtos, de forma perversa contra os consumidores locais, que em sua maioria continuam sendo trabalhadores humildemente remunerados a salários de mundo atrasado ou terceiro. Imprevisivelmente, Etneconi acabou por conhecer naquela manhã excitante de um sábado ensolarado, a referência de um 'importabandeador' através de um empresário lojista de Salvador, com o qual conversou pela primeira vez por telefone, naquele setembro de 1996:

– Olá, Odnanerf?

– Sim, Etneconi, em que posso servi–lo?

– Eu gostaria de ter alguns preços de discos, mais especificamente de CD e LD importados dos Estados Unidos. É para meu uso próprio e não para eu comercializar, certo?

– Claro, claro! Eu tenho trazido muito deles para alguns clientes de Salvador e posso garantir que meus preços são muito bons, mas normalmente eu cobro adiantado, certo!?

– Eu gostaria de poder conversar mais estreitamente contigo. Quando eu poderei te visitar, agora?

– Hoje não vai dar, pois estou viajando daqui há pouco para a Flórida. Vou buscar umas mercadorias lá, mas vamos deixar acertado nosso encontro para quando eu voltar dentro de duas semanas. Se você tiver algum pedido para fazer, então pode me dizer, certo?

– Bem, eu gostaria que você procurasse o LD Concert in Central Park de Paul Simon & Art Garfunkel e o Unplugged de Eric Clapton, OK?

– Pode deixar, vou comprar para você, tchau!

– Boa viagem!

Parecia que o acesso a Odnanerf, ‘importabandeador’ famoso de Salvador, se comportava como o início do contato com o mundo industrialmente adiantado, mesmo daqui de Salvador. Todavia, cerca de vinte dias depois, a percepção de que os preços de Odnanerf não eram nada baixos, porém iguais ou até superiores aos praticados no comércio de Salvador, gerou uma tremenda decepção para Etneconi, que tinha acreditado na boa vontade de Odnanerf e na sua presteza para conseguir os laser discs. Ficou claro que o atravessador e contrabandista se valia da idéia de que era capaz de trazer para Salvador tudo que desejasse porque pagava 'caixinha' aos fiscais alfandegários, ganhando em troco seu trânsito livre com mercadorias contrabandeadas do exterior pelos aeroportos nacionais, principalmente, coisa que nunca detalhou a Etneconi. E no dia do recebimento dos LD por Etneconi, no escritório do contraventor...:

– Odnanerf, como você consegue entrar no Brasil com tantos scanners de mais de dois mil dólares?

– Etneconi, caro amigo, você não queira saber como eu sofro, tendo que fazer duas viagens por mês aos Estados Unidos, pelo menos e correndo todos os riscos que este negócio nos impõe!

– Claro, claro!

Etneconi percebera ali se tratar de um contrabandista articulado, que ganhava muita grana e, assim, não haveria razão ou motivo para detalhar a Vadim suas ações ou ligações pouco recomendadas, provavelmente por serem criminosas neste mundo perigoso do contrabando, para uma pessoa de conduta reta. Odnanerf volta, porém, à carga:

– Olha, tenho um scanner de primeira, veja só sua embalagem!...

– Quanto custa?

– Apenas dois mil e quinhentos dólares!

– Apenas?

– Em Salvador está custando US$3,200 à vista e este pode até ser feito em duas vezes!

– Pra mim, não dá, posto que tenho outras necessidades a satisfazer primeiro e, além do mais, estou gastando muita grana com a infra–estrutura de minha empresa, pois pretendo tê–la operando no final de outubro. Obrigado!

Etneconi estava empolgado com a ideia de entrar para a atividade comercial e já havia percebido ali algumas nuances que muito o tinham desapontado. Destacavam–se as margens elevadas que se poderia obter em tais transações e o uso da mentira em prol da consecução de objetivos comerciais, vistas no seu contato com o contrabandista Odnanerf e já observadas em seu sócio provável Ateracip, um ex–funcionário de várias empresas, onde havia labutado como técnico da área de exatas (cuja saída daquele mercado ainda é curiosamente pouca entendida!...), o qual já ensaiava os elementos da safadeza comportamental em sua própria apresentação, ao candidatar–se ao posto de parceiro no negócio que Etneconi havia decidido empreender, uma vez que não dispunha de dinheiro algum para empregar na empresa, como também não tinha amigo algum capaz de ajudá–lo, exceto Etneconi, um cidadão de índole boa e de coração grande e bondoso. Tais fatos sobre Ateracip só foram percebidos muito depois por Etneconi, apesar de ter sido chamada a sua atenção por sua esposa e por amigos verdadeiros quanto à suspeita sobre o caráter deplorável de seu parceiro falso. Naquele momento, Etneconi já tinha verificado de que não teria muito tempo para se dedicar à empresa, daí a necessidade urgente de um parceiro para tocá–la no dia a dia das transações do mercado que deveria ser explorado pelos dois, acabando por surpreender a todos e ter Ateracip como seu sócio, que inteligentemente se mostrou muito motivado com vontade autorevelada de acertar quando do início da parceria, como se fosse mesmo a chance última de sua vida! Sim, era uma oportunidade porque ser humano algum – se conhecedor fosse do caráter de Ateracip ou se pelo menos Etneconi tivesse dado um crédito mínimo aos comentários ouvidos de amigos antigos e verdadeiros sobre sua conduta, não o teria aceito como amigo e muito menos para sócio, sem dúvida, como mais tarde a vítima dita haveria de se aperceber do erro que cometera por ter sua teimosia falado mais alto naquele momento inicial.

Sem saber das mutretas praticadas no comércio por Ateracip, Etneconi estava sempre a ouvi–lo a soltar o verbo ao revelar sua capacidade empreendedora na área comercial, já prometendo o fechamento de uma prestação de serviço pela empresa a um lojista do mercado local, de sorte a pagar as contas (despesas e custos) da empresa recém–aberta. Tudo isto alegrava e encantava Etneconi, que não tinha maldade alguma e não impunha descontos sobre os exageros de que seu pseudo–parceiro falava, ao ressaltar seu objetivo de ganhar muito dinheiro e de já conhecer o mercado local. Também, Ateracip se vangloriava de bem conhecer os Estados Unidos e de ter amigos morando lá, onde também haveria de morar no futuro breve, após “acertar” sua vida no Brasil. E, assim, Ateracip não parava de se promover, parecendo querer fazer a cabeça de Etneconi a seu respeito, na qualidade de empreendedor grande e competente, sempre revelando suas façanhas (sem maiores provas, é claro!) como trabalhador arrojado etc. e tal:

– Etneconi, tive uma ideia fantástica. Vamos subfaturar mercadorias nos Estados Unidos e pagar menos tributos na importação. Então vamos ganhar muito dinheiro na revenda delas no Brasil e não há nada de ilegal nisto!

– Eu não conheço bem esta atividade, mas veja se não podemos agir dentro do certo, sem complicações!

– Deixa comigo, vou fazer uma pesquisa de mercado por fax para sondar os negócios melhores, mais atraentes e interessantes para a nossa empresa. Aliás, eu queria que você soubesse que já estou fazendo um levantamento excelente dos fornecedores americanos e já tenho uma empresa para fazer despachos de cargas para nós nos Estados Unidos. Vamos dividir a conta telefônica, pois tenho usado muito o telefone lá de casa para a nossa empresa!

– Certo, tudo bem, já que se trata de ligações para a empresa, vamos dividir esta conta.

Iniciava–se, então, o nascimento do fracasso de uma relação, revelando–se que na atividade comercial ou, de forma mais ampla, no empreendedorismo em parceria, as obrigações devem ser igualmente partilhadas a priori e não a posteriori, como já ensaiava o parceiro falso, procurando tirar proveito do negócio recém–começado, esquecendo que o mesmo se apoiava na confiança de Etneconi sobre sua pessoa, fato sabidamente suportado na ajuda pessoal ampla que sempre lhe havia sido prestada pelo amigo inocente, que agora culminava em tê–lo como parceiro.

Mais adiante, ficaria revelada a falência financeira do parceiro de Etneconi; e, Ateracip, por ter fracassado em todos os seus empreendimentos anteriores e por estar “mais sujo do que pau de galinheiro” nos bancos de Salvador e também no comércio local, limitava–se a usar uma procuração da esposa e do sogro para agir como gerente de uma empresa comercial derradeira, muito complicada por ter sonegado tributos ao fisco durante anos e por também ter realizado muitos negócios fraudulentos, principalmente aqueles concretizados via o atendimento de cartas convites na área pública (em que sozinho participava ilicitamente com até três empresas, numa prática de supervalorização dos bens ofertados por todas as concorrentes, efetivando uma operação irregular e ilegal, vulgarmente conhecida por 'maracutaia', na qual a firma com orçamento menor – a sua empresa, óbvio! – sempre acabava por abocanhar o negócio pleiteado, de forma lesiva aos cofres públicos), numa ação criminosa contra o Estado enganado, onde se valia do pagamento de propinas a funcionários corruptos das instituições em que atendia com revenda de seus produtos superfaturados. Portanto, estava duplamente na mira dos fiscais de tributos e da própria ação policial, fato suficientemente observado por Etneconi e que logicamente caracterizava seu ex–parceiro como sonegador, com as qualidades de picareta e de larápio de intenções inescrupulosas. Finalmente, após tais revelações virem à tona para o conhecimento de Etneconi, sobrou a lição de que não se deve ter parceiro antes de uma exposição clara de suas obrigações e de sua participação igualitária nas despesas e nos custos do empreendimento (e não apenas nos lucros obtidos nos negócios realizados!) e de realizar uma investigação meticulosa sobre a conduta do mesmo, pois certamente não se poderá ter uma convivência sadia se o comportamento do parceiro é condenável moral e eticamente pela sociedade, posto que se o indivíduo é de índole má e/ou de conduta condenável estará sempre disposto a aplicar seu aprendizado perigoso e periculoso contra o ser humano ou vítima decorrente da realização de suas ações laborais alopradas, ilegais, criminosas, inescrupulosas, imorais e não éticas. E, em suas palavras derradeiras de despedida, conformou–se o cinismo descarado de Ateracip em sua fuga marginal, de forma hipócrita e lesando sobremaneira a confiança de Etneconi, que então já expressava sua desconfiança sobre as desonestidades praticadas pelo sócio repugnável, em desespero com sua falência financeira e escondendo a cara daqueles que já tinham manifestado crítica contrária à falsidade que não conseguia disfarçar com seu comportamento simpático de enganador de pessoas menos conhecedoras de suas ações verdadeiras, aí se incluindo sua família, sua esposa e seus filhos e amigos (que não o procuravam mais, também lesados por aquele canalha em sua grande maioria!), em frequente pregação de mentiras desencontradas, chegando a ferir a inteligência alheia:

– Todos vamos sair ilesos deste negócio!

Fora a última visão da face insana daquele hipócrita e, depois de ter sido literalmente ludibriado pelo mesmo aproveitador inconsequente (que causou prejuízos tantos e incalculáveis àquela empresa promissora e ao próprio Etneconi e sua família – os quais viram ir para o ralo muito de suas economias acumuladas ao longo de décadas de muita labuta, durante aquele período operacional curto e prejudicial, superior a um ano, quando a firma estivera impropriamente apoiada na atuação péssima ou incompetente de Ateracip nos mercados em que aquele negócio pequeno se fez presente), Etneconi ainda a preservou após saneá–la dos malefícios causados pelo cretino mencionado. Em seguida, arregimentou um sócio leal e competente, sabedor de suas obrigações e de seus direitos, o qual pode ser visto como um empresário coerente, do tipo chamado informalmente de 'pé no chão', não possuidor de desvios em sua conduta normal e diária, possibilitando iniciar a recuperação do sonho de Etneconi de tornar–se um empresário honestamente bem sucedido, mesmo atuando apenas numa área comercial pequena dentro do mercado brasileiro gigantesco!

Pelos resultados alcançados pelo novo team binário da empresa comercial pequena, Etneconi não se cansava de lembrar e pronunciar (e ainda continua a repetir!) para si mesmo e para o parceiro atual, impoluto e ajuizado, a frase popular usada costumeiramente por seu sogro magnífico, um homem exemplar, pai de família dedicado, de coração aberto a todo e qualquer ser humano correto e justo:

– “Quem com porcos se mistura, farelo come!”

Por fim, ao contar o ocorrido a familiares, amigos e conhecidos mais chegados, Etneconi costuma recitar o soneto “Vendedor larápio”, relembrando o caráter abominável do crápula Ateracip, que literalmente o enganou, legando–lhes ainda a mensagem maior de que compete ao Deus bondadoso o ajuste final de todas as contas dos mortais, enfatizando o comportamento imoral e decorrente da fraqueza do ser humano quando doente da alma, configurando um exemplo que jamais haverão de esquecer no amanhã ou porvir de suas vidas:

“VENDEDOR LARÁPIO

“– Ó, negociante espertalhão,

“Vivo ladrão contra boa gente,

“Tua morada será na prisão

“Junto da morte à tua frente!

“Safado que até a Deus engana

“Que tem o caráter em falta

“Em tua maldosa ação mundana

“– És larápio com vasta pauta...!

“Sim, por ludibriares humanos

“Com tantas palavras sem amor

“– És mentiroso e não tens pudor!

“Muitos já sofreram enganos

“Por ti – ó, tão odiável, torto,

“Falso que para Deus está morto!”.

Salvador, 2006.

Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 93-102).

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 18/03/2016
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