Canção Calada, Verso Interrompido

Hoje pela manhã após o café e ler o meu jornal, fui arrumar alguns livros e discos que há muito estavam guardados e escondidos por trás da poeira que insiste em repousar na minha velha estante. Limpando revistas velhas e gibis daqui, espanando livros e discos dali, encontrei entre alguns Beatles e Stones um disco da Elis Regina, a voz mais bela da nossa música. Eu nem me lembrava mais desta relíquia, era o disco Essa Mulher de 1979. Abri o encarte e fui acometido por uma grande emoção, estava lá a dedicatória do meu grande e dileto amigo Luiz Cláudio que o mesmo fez com tanto carinho e harmoniosa caligrafia especialmente pra mim quando me deu o disco de presente de natal daquele ano. Não resisti, limpei e o botei logo pra tocar e me sentei. Antes de terminar Cai Dentro de Baden Powel e Paulo César Pinheiro, adiantei logo a agulha e passei para a segunda faixa, foi ela o motivo do Luiz me presentear com o disco. Era O Bêbado e a Equilibrista, uma das obras primas do nosso cancioneiro, um samba repleto de frases chaplineanas do mineiro João Bosco acompanhado de uma espetacular poesia do carioca Aldir Blanc.

Já na introdução não contive as lágrimas, um filme foi sendo rodado na minha memória e as lembranças daqueles tempos de repressão e censura foram tomando conta do meu interior. Lembrei-me dos companheiros de luta da faculdade de Filosofia como os jornalistas João Luiz e Guerra Matos, a poetisa Alice Castro, o cartunista Zarolho e, claro, o cantor, compositor e baixista Luiz Cláudio, parceiro de infância filho de minha professora de gramática D. Maria do Carmo e do comerciante Bonifácio. De toda essa produtiva turma e frutífera amizade, apenas o Luiz não está mais entre nós. Enquanto a Elis começava “Caía a tarde feito um viaduto...”, senti aquela lembrança dolorosa me bater no peito com toda a força de um coice, aquele grupo engajado, nossas ideologias, nossas lutas naqueles anos de chumbo, nossas passeatas pela anistia, infelizmente a triste lembrança do cacetete dos militares, do gás lacrimogênio, mas que nada disso era maior do que o nosso sonho de ver um Brasil melhor. Tudo passou tão rápido. Será que esse Brasil de hoje é o que por quem tanto lutávamos com tanta gana fazendo música e indo às ruas?

A canção na voz da Elis ia penetrando minha alma e o pranto me tirava as forças “um bêbado com chapéu côco fazia irreverências mil...” Lembrei-me das nossas voltas pra casa depois de porres antológicos no bar do Mário Pires, Luiz cantando, eu e Alice Castro declamando versos e Zarolho com suas piadas engraçadíssimas dando um momento de alegria naqueles tempos tão sombrios. Meu amigo sumiu, partiu, não num rabo de foguete, talvez na cauda de um cometa que o levou pra uma outra galáxia, um planeta imaginário longe da censura, da repressão, dos generais, do DOI-CODI e do spray de pimenta no pátio da universidade. Como posso esquecer aquela tarde em que ele foi apanhado se era essa música que tocava? A gente estava muito animado, feliz, se abraçando e dizendo um pro outro “Agora a Anistia sai.” Elis dava voz não só ao hino da Anistia, mas também a um Brasil inteiro que sonhava não só com a volta do irmão do Henfil, mas irmãos de Josés, de Antônios, de Pedros e de tantos outros que estavam tão longe do seio de sua pátria. O homens do DOPS o pegaram, o levaram para nunca mais. A pátria mãe gentil da minha alma hoje mais uma vez chora a sua perda. Lembro-me da nossa turma toda unida procurando pelos departamentos e pela Base Aérea do Galeão algum vestígio do seu corpo. Não dar um enterro pomposo e digno ao nosso amigo era o que mais nos doía, dói até hoje. A voz de sereia da Elis vai cantando “Choram Marias e Clarices no solo do Brasil” e uma dessas Marias, inconsolável mesmo depois de tantos anos, é a minha eterna professora Maria do Carmo que ainda guarda consigo aquela última foto que tiramos juntos na fazenda do avô do Zarolho dias antes do seu filho desaparecer.

Saudades de ouvi-lo cantar, das nossas discussões sobre música, política e futebol, nossos planos de fazer uma escola de Belas Artes. Isso me fez repensar em tudo. Será que valeu a pena toda a luta? Perdemos um grande amigo que nunca saberemos se foi assassinado, se ele se matou, se morreu de tristeza e solidão, se realmente morreu, se ficou louco. O que sei é que depois daquele acontecido nunca mais tivemos uma noite de sono tranquila. Aqueles homens armados, sérios e assustadores chegaram sem dizer uma só palavra e o pegaram. Parafraseando Sófocles, aquele silêncio prolongado tinha realmente algo de assustador. Por que ele e não os outros? O disco da Elis tenta me responder, tento ler e encontrar a resposta na dedicatória do Luiz, cada frase da letra me corta a palavra “Sabe que o show de todo artista tem que continuar...” Pena que o seu não continuou, pena que calaram a sua pena e sua voz. De súbito, frearam bruscamente a sua vontade de viver, os sonhos, as alegrias, as desventuras, tudo de uma só vez. Quantas outras Marias ainda vão chorar? Quantos amigos ainda vão desaparecer? Quantos Luiz Cláudios e quantos Herzogs vamos ter que procurar o corpo? Quantos versos ainda serão interrompidas e quantas outras canções serão caladas?

A música acabou e não tive mais forças para repeti-la, enxuguei o pranto e achei melhor deixar pra limpar toda aquela poeira outro dia. Saí pra tomar um trago no boteco do Jorginho enquanto ainda posso sentir o bálsamo da liberdade em minhas narinas sonhadoras, lá vou bater um papo com alguns amigos que, assim como eu, ainda anseiam encontrar um Carlitos desses perdido por aí e alimentar o nosso sonho de não ver mais chorando nem Marias, nem Clarices, nem ninguém.