Lágrimas de Luz

Sonhava com o primeiro dia de escola. Os últimos anos arrastavam-se lentamente e enquanto esperava ansiosa completar a idade certa para frequentar a escola, olhava seus irmãos partirem felizes para o caminho do saber. A menina sonhava com o dia em que também caminharia ao lado dos irmãos e, juntos fariam a lição de casa sob a orientação da irmã mais velha. Na sua tenra idade, embora inocente e pouca instruída, não lhe faltava intuição e por isso percebera que seus pais não poderiam auxiliá-la, pois tinham pouca escolaridade.

Enfim, o grande dia chegou. A mãe zelosa preparou o desjejum com carinho para ela e seus irmãos, finalmente todos rumariam unidos para o mundo do conhecimento, dos sonhos e das esperanças.

O sol brilhou mais forte, os olhos da menina refletiam os raios dourados: felicidade, expectativa, curiosidade, alegria... Tudo se misturava em seu coração formando uma nuvem de emoção que a fazia levitar.

Caminhava saltitante carregando uma frasqueira com bolinhos de chuva salpicados de açúcar com canela e uma garrafinha de suco de limão.

Na primeira fase da escolaridade da menina, as séries iniciais, até a pré-escola ela foi a criança mais feliz da escola, amava as brincadeiras, as massinhas de modelar, as bonecas de papel que vestiam e desvestiam modelitos, brinquedos de montar. Tinha uma admiração grandiosa pela professora, pessoa carinhosa e cúmplice da menina nas brincadeiras de esconde-esconde, permitia até que ela levasse emprestada uma bonequinha vez ou outra para brincar em casa, pois a menina sempre devolvia no dia seguinte.

Passou- se o tempo e, a menina ingressou na primeira série com o mesmo entusiasmo e curiosidade em que iniciou sua vida escolar.

Estranhou a disposição das classes, umas atrás das outras, diferentemente da sua sala anterior, a professora não era simpática, alegre e divertida como a anterior.Ela sentia-se confusa e temerosa com a nova situação. Os dias na nova série tornavam-se piores, ela sentia-se cada vez mais confusa, chorava na hora de sair para a escola, na sala abaixava a cabeça, doíam-lhe as têmporas, sentia um nó apertado em seu fino pescocinho.

A professora rezingava e chamava a sua atenção rispidamente. Comentava com os outros educadores sobre a menina e dizia que ela tinha algum problema!

“-Nem parece irmã de Mariana, tão aplicada e participativa, nunca nos causou preocupação.”

A tão desejada vida estudantil era um descalabro, a menina sentia-se só, desguarnecida, derrocada.

Repetiu a primeira série duas vezes, as letras teimavam em não permitirem que seus olhinhos as fraseassem atribuindo-lhes significados, as letrinhas dançavam nas páginas brancas molhadas de lágrimas, as tarefas caseiras eram verdadeiros martírios, ninguém conseguia ajudá-la e se o influxo das letras era inexprimível, eram também molhadas de um choro desconsolado, ela se perguntava o porquê de não conseguir ler?

Em cada entrega de notas e pareceres, altercava-se a discussão e a mãe da menina lenienciava a condição, concordando com as mestras que talvez ela não tivesse aptidão para os estudos.

Então ela foi esquecida em meio aos colegas que aprendiam avidamente as propostas apresentadas.

Para proteger-se, a menina distanciava-se dos colegas, da família, dos conhecidos, lentamente emudecia, proporcionalmente ao congelamento das emoções e sentimentos, refugiava-se em um mundo somente seu, criando uma imagem farsesca da realidade, e assim fugia do sofrimento e descaso dos adultos. Querendo fugir, mergulhava mais e mais na solidão e no desamparo emocional.

Para fazer jus à máscara que se acoplava à sua real personalidade, empertigava-se diante dos outros, assumia uma sisuda atitude e vestia uma couraça de autoproteção.

O fracasso escolar estendia-se agora ao seu redor, a autoestima desfiava-se tal qual fiapo de tecido puído. As crianças a evitavam, os pais sentiam vergonha, pois esperavam que ela realizasse suas ambições e desejos não concretizados por eles. Ela sentia o peso das cobranças e era um fardo pesado demais para uma criança franzina e abalada.

Os animais eram seus únicos amigos e companheiros, conversava com gatos e cães que encontrava pelas ruas, e que a seguiam por todos os cantos.

Seguidamente levava para casa animais sem lar, dava-lhes comida e cuidados e já que não notavam a sua presença, que ela mesma fazia questão de camuflar, levava seus amiguinhos para dormir em sua cama, recarregava assim sua afetividade numa troca justa, despretensiosa e sem preconceitos. Desabafava, conversava com os animais olho no olho e ela sentia que eles a compreendiam.

A menina, na sua candura, não vislumbrava o que de fato ocorria com ela, era um botão de flor que não se abria! Mirava o céu e pedia a Deus que a levasse embora, não era deste mundo, sentia-se diferente, estranha... Sentia asas em suas costas, mas não sentia o solo sob seus pés.

O peso da culpa arqueava seus pequenos ombros: culpa de fazer sofrer seus pais, culpa de ser uma decepção, culpa de ser uma pena solta ao vento.

Dores de cabeça, cólicas e vômitos precediam as manhãs de aulas e ela só conseguia sair para a rua rumo à escola sob as ordens severas do pai.

Na escola, escondia-se no banheiro o máximo de tempo possível, principalmente nas aulas de matemática, tinha verdadeiro pavor da professora que a chamava ao quadro e, sabendo que ela não conseguia ler os problemas, humilhava-a frente a todos. Todos riam e zombavam dela, assim para ela o destino era ficar no intervalo do recreio tentando realizar as operações e molhando o caderno com lágrimas solitárias, descrente da vida.

Em seu pequeno coração eclodia vergonha, humilhação e culpa. A única habilidade que demonstrava majestosamente eram os desenhos bem elaborados e ricos em detalhes que jamais eram valorizados e nem sequer notados.

Por trás das portas soçobravam vozes de acusações:

- É burrinha coitada!

-Vai ter que ganhar a vida com a força dos braços!

- Nem parece que é irmã dos outros, tão inteligentes!

Ela estava acostumada com o seu próprio mundo, conversava com seres imaginários e passava a tarde fora de casa, refugiada atrás de uma igreja brincando com os animais e com bonecas construídas com pedaços de madeira, frutas, legumes e com o que encontrasse. Não lhe faltava criatividade.

No final do segundo ano de repetência e já certa que repetiria mais um ano, Foi deixada sozinha em uma salinha com um livro de historinhas na sua frente, até que as outras crianças realizassem as provas finais.

Sem saber o que fazer, começou a olhar as figuras aleatoriamente e sem refletir, sem ter consciência de nada, deixou-se entrar pelas figuras numa viagem ondulante, sentindo as emoções que os desenhos proporcionavam, e sem se dar conta sentiu as letras, de repente tudo fazia sentido, lia e entendia o que lia - um mundo novo começava ali - Experiência transcendente e sem testemunhas- Os significados das letras, antes desconexos e farfalhosos, agora se alinhavavam e encontravam seu caminho.

A menina correu até sua sala de aula procurando orgulhosa pela professora, queria mostrar-lhe que no último dia de aula, no dia da avaliação final, a porta interior se abriu e o botãozinho de flor se abria vigoroso. Mas a professora havia ido para casa e a substituta não teve tempo de ouvir e nem sensibilidade para entender a mágica do momento.

Decepcionada com a escola,porém feliz com a descoberta de que agora lia, caminhou altiva para casa, pela primeira vez orgulhosa e segura de si, trilhara solitariamente o caminho do saber e sozinha vencera, suas lágrimas de luz agora se transformaram em estrelas no papel que registraria a sua nova jornada.

Seus livros contam histórias fantásticas carregadas de sentimentos e hoje correm o mundo.

Sônia Lorena Aver

loreninha
Enviado por loreninha em 18/04/2016
Reeditado em 22/04/2017
Código do texto: T5608837
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